Matador trecho de "A Prisioneira", quinto volume de "Em Busca do - TopicsExpress



          

Matador trecho de "A Prisioneira", quinto volume de "Em Busca do tempo Perdido", que eu li ontem no Sarau Elétrico proustiano. O escritor descreve a morte de Bergotte, um autor que admirava na juventude. A tradução é do Mario Sergio Conti. É ou não é de largar tudo e se atirar nesse negócio? "Morreu nas seguintes circunstâncias: uma crise leve de uremia foi motivo para que lhe prescrevessem repouso. Mas, tendo um crítico escrito que na Vista de Delft, de Ver Meer (emprestado pelo Museu de Haia para uma exposição holandesa), quadro que ele adorava e acreditava conhecer bastante bem, um pequeno pedaço de parede amarela (do qual não se lembrava) era tão bem pintado que, visto sozinho, era como uma preciosa obra de arte chinesa, de uma beleza que se bastava em si mesma, Bergotte comeu umas batatas, saiu e entrou na exposição. Logo nos primeiros degraus que teve de subir foi tomado por tonturas. Passou diante de vários quadros e teve a impressão de secura e inutilidade de uma arte tão artificial, e que não valia as correntes de ar e o sol de um palazzo de Veneza, ou de uma simples casa à beira-mar. Chegou enfim diante do Ver Meer que ele recordava mais intenso, mais diferente de tudo o que conhecia, mas onde, graças ao artigo do crítico, reparou pela primeira vez os pequenos personagens de azul, que a areia era rosa, e por fim a preciosa matéria do pequenino pedaço de parede amarela. Suas tonturas aumentaram; fixou o olhar, como uma criança na borboleta amarela que quer pegar, no precioso pedaço de parede. “É assim que eu deveria ter escrito, dizia ele. Meus últimos livros são secos demais, seria preciso passar várias camadas de cor, tornar minha frase preciosa em si mesma, como esse pequeno pedaço de parede amarela.” Enquanto isso a gravidade das suas tonturas não lhe escapava. Numa balança celeste lhe aparecia, pesando num dos pratos, a sua própria vida, enquanto o outro continha o pequeno pedaço de parede tão bem pintado de amarelo. Sentia que imprudentemente havia dado a primeira pelo segundo. “Mas eu não gostaria, disse a si mesmo, de ser para os jornais vespertinos a nota pitoresca dessa exposição.” Ele se repetia: “Pequeno pedaço de parede amarela com um alpendre, pequeno pedaço de parede amarela.” Nisso deixou-se cair sobre um canapé circular; também bruscamente parou de pensar que a sua vida estava em jogo e, voltando ao otimismo, se disse: “É uma simples indigestão que me deram umas batatas malcozidas, não é nada.” Um novo golpe o abateu, ele rolou do canapé para o chão, aonde acorreram todos os visitantes e vigias. Estava morto. Morto para sempre? Quem o pode dizer? Claro que as experiências espíritas não fornecem mais provas do que os dogmas religiosos de que a alma subsiste. O que se pode dizer é que tudo se passa na nossa vida como se nela entrássemos com o fardo de obrigações contraídas numa vida anterior; não há nenhuma razão nas nossas condições de vida sobre esta terra para que nos acreditemos obrigados a fazer o bem, a ser delicados, mesmo a ser polidos, nem para que o artista ateu se acredite obrigado a recomeçar vinte vezes um trecho cuja admiração que suscitará importará pouco a seu corpo comido pelos vermes, como o pedaço de parede amarela que pintou com tanta ciência e refinamento um artista para sempre desconhecido, mal e mal identificado pelo nome de Ver Meer. Todas essas obrigações que não têm a sua confirmação na vida presente parecem pertencer a um mundo diferente, fundado na bondade, no escrúpulo, no sacrifício, um mundo inteiramente diferente desse aqui, e do qual saímos para nascer nessa terra, antes talvez de a ele retornar e reviver sob o império dessas leis desconhecidas, às quais obedecemos porque portamos o ensinamento delas em nós, sem saber quem aí as traçou, essas leis das quais todo trabalho profundo da inteligência nos aproxima e que são invisíveis somente – e se tanto! – aos tolos. De modo que a ideia de que Bergotte não estava morto para sempre não é inverossímil. Enterraram-no, mas no velório todo, nas estantes iluminadas, os seus livros, dispostos de três em três, velavam como anjos com as asas abertas e pareciam, para aquele que não existia mais, o símbolo da sua ressurreição."
Posted on: Wed, 02 Oct 2013 15:22:01 +0000

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