O Moleque Que Deu De Bicicleta Em Bomba De Gás Ninguém sabe de - TopicsExpress



          

O Moleque Que Deu De Bicicleta Em Bomba De Gás Ninguém sabe de Reinaldo. Morava no Rio, mas não nasceu lá; nasceu na Bahia, mas seus pais não são de lá. Por ocasião de umas férias que seu pai conseguira depois de quase três anos, o casal subiu pra [perto de] Ilhéus, sua mãe estava grávida de oito meses, mas queria aproveitar também já que não podia fazer diárias por causa da barriga. A ideia era simples, passar uma semaninha e curtir um pouco de paz na casa de um amigo da família. Só que eles mal chegaram e o moleque já estourou a bolsa, nasceu por ali mesmo [perto de] Ilhéus. Enganando o calendário, já nasceu driblando. Jogava bola, e jogava muito, porque era o que tinha pra fazer. Na escola, o diretor não era muito favorável, mas não ligava. O moleque podia fazer o que quisesse, contanto que não complicasse a situação da instituição na comunidade. Os professores é que não gostavam nada. Eles achavam isso o cacete, mas ganham muito pouco pra se preocupar com mais um potencial zagueiro [ou volante, que seja]. Ainda o moleque tivesse boas notas, podia ser exemplo pros amigos, mas aquele ali... Ele nem ia às aulas! Seus pais já tinham sido chamados para conversas, mas nenhuma medida adiantou muito. Reinaldo tinha nascido pra jogar, e driblava muito. Você, leitor, por exemplo, acabou de ser driblado. Se você pensou que Reinaldo largar a escola para jogar foi um problema causado por uma conduta permissiva dos pais, o motivo clássico, Reinaldo passou por você com um clássico: um elástico de Rivelino, daqueles de quando jogava para o Fluminense, time de sua mãe; se pensou nisso como um problema causado pelo baixo salário dos professores, Reinaldo te derrubaria duas vezes, como Júnior fez pelo Flamengo de seu pai, contra Renato Gaúcho pelo Botafogo, de Marcello Alencar, prefeito do Rio na época; se você pensou que isso tudo é um problema e ponto, recuando em sua reflexão, gaguejando em seus argumentos, Reinaldo passou por você pedalando sete vezes, qual Robinho, que ele viu pela TV quando tinha 10 anos. Agora, se você pensou numa superficial relação entre futebol e alienação, Reinaldo passou por você como Sócrates passou por João Figueiredo. Não existe alienação. Alienação é um termo que gente muito deslocada da realidade usa pra dizer que tem gente muito deslocada da realidade. Se falamos em realidade, falamos de um dado comum a todos: aos que acompanham novelas como um cientista acompanha seus experimentos, aos que acompanham as sucessões políticas como quem acompanha uma novela, aos que acompanham as transações esportivas como quem acompanha um processo de democratização de um país, aos que acompanham os fluxos econômicos como quem acompanha uma missa, aos que tem fé no método científico; – se a vivência dos processos é fetichizante, não é para uns, mas para todos. E se ao ler ‘fetiche’ você correu para Kant, Marx e até Adorno, então Reinaldo foi um Garrincha contra você. Reinaldo cresceu sem teoria. Uns brancos que subiam às vezes e o viam jogar, se sentiam bem com isso, primeiro porque Reinaldo jogava de um jeito muito bonito mesmo; depois porque eles reparavam sua idade, seus movimentos, seus sons, seu habitat e pronto, aflorava neles a sensação de zoológico que todos somos treinados a ter em ambientes que não nos sejam familiares. Reinaldo era dissecado em dados regionais de escolaridade, análises de risco geológico do terreno das moradias, mapas de acesso a equipamentos públicos, projetos de segurança e histórias de reintegrações de posse; e num passe de método – solve et coagula –, ele era um miserável. Ninguém sabe dele. E ninguém soube, também, pois após um período de turbulência social, ninguém mais viu o rapaz. A família, uns amigos, algumas ONGs, todos procuraram sem sucesso. No entanto, poucos dias antes de sumir, um vídeo em que ele figura ficou muito popular na internet. Acontece que um canal de jornalismo independente filmava uma manifestação que dava muito certo, inclusive com direito a resposta da polícia, com cavalaria e caveirão – o ato era pela desmilitarização da polícia –, e uma das câmeras da resistência captou um momento muito peculiar: Após um estrondo fortíssimo, aparece um manifestante usando uma balaclava improvisada de uma camiseta vermelha. Ele afasta um mascarado companheiro de movimento, dizendo “- Sai, Jason!”; e antes que uma bomba de gás atinja o chão, ele a chuta de volta – De bicicleta! Acredita? –. A bomba voa, seguindo o caminho de volta; mas a câmera nem a filma, agora mira o rapaz se levantar calmamente, olhando para o alto e para frente, observando para onde foi a arma química. Seus companheiros ficam em silêncio um momento, e logo uns cinco ou seis gritam como se tivessem visto um gol de placa. Aquele que foi “salvo” o cumprimenta – eles não parecem se conhecer –, e ambos seguem; um para um lado e o nosso Anarco-Leônidas para o outro, caçando, nos rastros de fumaça, o paradeiro das próximas cobranças de falta. Ninguém sabe de Reinaldo. -*-*-*- Reinaldo é um personagem fictício, em uma ficção que quase parece realidade. Muitos acham exagero quando ouvem o termo “Desaparecido Político”, acham ingenuidade ou até anacronismo, dizem que o termo carrega uma visão demasiado conspiratória, consequência de um passado ditatorial recente. Mas para figuras como Reinaldo, gente para quem o cotidiano é caso de intervenção estatal direta, toda ação é um ato político e toda resposta que é dada está na mesma moeda – e assim deve ser compreendido. Sem vitimismo. Sem moralismo. Ninguém sabe de você. por Emerson Xavier
Posted on: Fri, 02 Aug 2013 16:53:03 +0000

Trending Topics



ress.com/Grace-36-inch-Traditional-Graduated-Bakers-Rack-4-Wood-Shelves-topic-343056162496254">Grace 36 inch Traditional Graduated Bakers Rack, 4 Wood Shelves,
BY Ramiro Herrero; ALEMANIA FRAUDULENTAMENTE GESTÓ LA CRISIS
The last President of the United States we had was Abraham

Recently Viewed Topics




© 2015