(...) O corpo da possuída é bem diferente. Não está envolto em - TopicsExpress



          

(...) O corpo da possuída é bem diferente. Não está envolto em prestígios; é o lugar de um teatro. É nele, nesse corpo, no interior desse corpo, que se manifestam os diferentes poderes, seus enfrentamentos. Não é um corpo transportado: é um corpo atravessado em sua espessura. É um corpo dos investimentos e contrainvestimentos. No fundo, é um corpo fortaleza: fortaleza investida e sitiada. Corpo-cidadela, corpo-batalha: batalha entre o demônio e a possuída que resiste; batalha entre o que, na possuída, resiste e essa parte dela mesma, ao contrário, que consente e se trai; batalha entre os demônios, os exorcistas, os diretores e a possuída, que ora os ajuda, ora os trai, ficando ora do lado do demônio pelo jogo dos prazeres, ora do lado dos diretores e dos exorcistas por meio de suas resistências. É tudo isso que constitui o teatro somático da possessão. Exemplo: “O que era sensivelmente admirável é que [o diabo], recebendo a ordem em latim de deixar [Joana dos Anjos] unir as mãos, notava-se uma obediência forçada, e as mãos se uniam sempre tremendo. E, recebido o santo Sacramento na boca, ele queria, soprando e rugindo como um leão, repeli-lo. Recebendo a ordem de não cometer nenhuma irreverência, via-se [o demônio] parar e o santo Sacramento descer ao estômago. Viam-se ânsias de vômito e, proibindo-lhe que assim fizesse, ele cedia.” Como vocês veem, o corpo da feiticeira, que podia ser transportado e tornado invisível, é agora substituído por (ou aparece tomando o lugar desse corpo) um novo corpo detalhado, um novo corpo em perpétua agitação e tremor, um corpo através do qual é possível acompanhar os diferentes episódios da batalha, um corpo que digere e que cospe, um corpo que absorve e um corpo que rejeita, nessa espécie de teatro fisiológico-teológico que o corpo da possuída constitui: é isso, creio eu, que o opõe, muito claramente, ao corpo da feiticeira. Além do mais, esse combate tem sem dúvida sua assinatura, mas sua assinatura não é de modo algum a marca que encontramos nas feiticeiras. A marca ou a assinatura da possessão não é, por exemplo, a mancha que encontrávamos no corpo das feiticeiras. É algo bem diferente, é um elemento que vai ter, na história médica e religiosa do Ocidente, uma importância capital: a convulsão. Os Anormais: curso no Collège de France (1974-1975). São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 182-183
Posted on: Sat, 14 Sep 2013 05:50:03 +0000

Trending Topics



Recently Viewed Topics




© 2015