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PARTE NR. - CONSIDERAÇÕES CLÍNICAS SOBRE O TRATAMENTO DA VÍTIMA E DO AGRESSOR A partir do exposto até agora, podemos entender em que sentido Hirigoyen observa que a condução clínica, para o tratamento das vítimas, não deve de maneira alguma ater-se em responsabilizá-las. Diz a autora: Não é raro analistas aconselharem as vítimas [...] a verificarem até que ponto elas próprias foram responsáveis pela agressão que sofreram, até que ponto inclusive a desejaram, mesmo inconscientemente. Na realidade, a psicanálise considera apenas o intrapsíquico, [...] e não leva em conta o seu ambiente. Ignora, assim, o problema da vítima, que é considerada como cúmplice masoquista. Quando, apesar de tudo, terapeutas tentam ajudar as vítimas, pode acontecer que, com sua hesitação em nomear o agressor e o agredido, reforcem a culpa da vítima e, com isso, agravem seu processo de destruição” (HIRIGOYEN, 2002, p. 14). Responsabilizar a vítima implica em reforçar sua impressão de que o agressor não a manipula e não a agride, e que seu sofrimento deve-se a si próprio, de modo que é ela que deve tentar superar suas dificuldades – o que ela, no entanto, já vem tentando, e que é justamente o que a faz enredar-se na perversão do agressor. O paciente M., que durante quinze anos viveu um casamento extremamente destrutivo para ele, em que sua esposa o diminuía continuamente, esteve em análise ao longo do tempo em que esteve casado. Precisou sair de análise para separar-se e, ao fazê-lo, sentiu necessidade de fazer análise, mas não mais com o mesmo analista. A primeira análise lhe serviu para melhorar sua vida psíquica em diversos pontos; contudo, diz ele, a cada vez que desabafava queixando-se de sua esposa e relatando seu sofrimento atroz advindo de seus ataques, seu analista lhe dizia “mas e você?” Essa postura lhe deixava confuso, sentindo-se culpado, responsável pelo próprio sofrimento e mesmo pelas agressões sofridas, como se na verdade as provocasse. Mas, seguindo esta hipótese, não conseguia entender como poderia parar de provocar contra si as agressões. Contou-me isso a partir de minha postura em comentar as agressões infligidas a ele. Eu dizia espontaneamente coisas como “Certamente ela tem as razões dela, que ela deve ver com o analista dela. Mas ao menos a partir do seu relato, é uma agressão enorme isso. Se ela não percebe que chega assim a você, é preciso que você lhe imponha limites à avidez, ao abuso e ao desrespeito dela.” Poder ver algum defeito nas atitudes dela foi para ele surpreendente e libertador. A situação aqui se inverte em relação ao enfoque centrado somente no intrapsíquico, colocado por alguns psicanalistas. Pois pouco importa a intenção, e sim que a atitude dela, ao menos tal como é recebida no momento pelo paciente, é de um desrespeito e de uma violência insidiosa atroz. É preciso primeiro reconhecer isso, para somente depois se poder trabalhar o lado da recepção das agressões, de tudo que leva o agredido a aceitar a agressão, a não conseguir traçar limites, a não se defender, e a ficar tão abalado ao ser agredido. É importante primeiro afastar a origem do assédio e da confusão afetiva e mental, se não fisicamente ao menos psiquicamente a partir do reconhecimento da agressão, para somente depois – a vítima já não se pondo mais tanto em questão, já não mais tão fragilizada ou por vezes desestruturada (nos termos de Winnicott, interrompido um estado crescente de desintegração) – ser possível reconhecer que sua participação se resumia no fato de não ter clareza suficiente para sair da situação. E ser então em seguida possível entender por que essa clareza não era alcançada – e não era, devido a seu desejo reparador, ligado provavelmente a algum tipo de culpa, vinculado a seu próprio narcisismo. A vítima certamente sente-se narcisicamente engrandecida e valorizada ao suportar as agressões e mesmo o sofrimento que disso decorre, a ‘entender’ o outro, a tentar melhorar-se. Como descreve Hirigoyen, trata-se de uma relação, onde um deseja dar e o outro deseja não receber, mas tomar. A vítima pode, com a ajuda da análise, passar a entender esta diferença, de que ela deve dar somente à condição de o outro desejar, poder, querer e saber receber, com algum grau de reciprocidade ou de reconhecimento; que tomar, inverter as coisas, não ajuda ao doador, e tampouco ao agressor, que apenas confirma, assim, as suas defesas. Para a clínica da perversão narcísica, Hirigoyen busca apoio em autores como Ferenczi e Khan, de uma clínica do cuidado, ou dos afetos, mais do que uma clínica da responsabilidade ou da representação. O que em outros casos seria apenas um reforço ao eu do paciente ou, por vezes, pior ainda, um reforço do seu sintoma – confirmar a agressão sofrida por ele –, neste caso torna-se libertador e condição para o tratamento. Daí a importância de se reconhecer a perversão narcísica apesar de suas práticas silenciosas. Só então é possível interpretar sua participação, no sentido de compreendê-la, para poder destarte começar o trabalho de prescindir daquela isca, de desemaranhar-se daquela chantagem sentimental subliminar. Paradoxalmente, é importante não vitimizar o agredido, tampouco. Ele precisa ver que o analista reconhece claramente que ele é uma vítima, que foi enredada e que o difere de um masoquista; mas não deve ser enfraquecido pelo olhar do analista. Neste, mais do que em qualquer outro quadro, me parece fundamental um uso da interpretação – tanto num primeiro momento onde não é recomendável investigar sobre a parte da vítima na relação, quanto num segundo momento onde isso já é possível – como, segundo a definição de Winnicott, sendo ela própria um holding (WINNICOTT, 1983, p. 155). A interpretação é fundamental, decerto, mas estou, como Winnicott, convencido de que sua eficácia está intimamente ligada ao holding (FERRAZ, 2002; GRAÑA, 1998), do qual ela termina por fazer parte, no sentido de que o paciente se sente compreendido quando o analista faz uma boa interpretação (WINNICOTT, 1983, p. 112), por mais que no momento, em que é feita, ela possa suscitar no paciente insegurança, angústia ou ansiedade. Seguindo os passos de Racamier, Hirigoyen enfatiza o fato, certamente importante para a vitimologia enquanto saber jurídico, da ‘maldade’ do agressor. Para nós, e para a psicanálise no nosso entender, esta questão propriamente moral não tem relevância, aliás, talvez sequer tenha sentido. Para além de bem e mal, no tratamento do agressor importa compreender o funcionamento psíquico e afetivo do agressor, onde perdão ou condenação moral não fazem sentido. Inclusive porque, em nossa clínica, podemos encontrar pacientes não apenas vítimas da perversão narcísica, mas também agressores. Cabe com preender seu funcionamento psíquico para poder conduzir otimamente, dentro do possível, o trabalho de análise, tanto quando a vítima é nossa paciente quanto quando o é ele próprio. Antes de tudo, é importante entender que o agressor não agride ‘por maldade’ intencional ou calculada conscientemente. Mas por um cálculo imaginário e fantasmático, com toques paranóicos explícitos e uma deformação na apreensão do real, por uma projeção de sentimentos defensivos e medos primários sobre as ações dos outros – o que nada mais é do que uma defesa fortemente estabelecida que funciona de maneira estruturante para seu psiquismo, constituindo uma versão particularmente problemática e solidificada do que Winnicott chama de falso self, quando este, em nome de proteger o verdadeiro self, finda por ocultá-lo e substituí-lo, como forma de proteção de uma melancolia e de uma depressão latentes. Ou seja, trata-se de um quadro em que há uma falta de confiança interna estrutural, advinda de uma integração arcaica do self extremamente problemática. Não há má fé ou cinismo consciente na ação do agressor. Decerto, podemos observar uma extrema má fé ou cinismo inconscientes. Porém, para a consciência do agressor, o que é consciente são suas manobras, mas ele não as reconhece para si como uma manipulação e justifica-as pelo desprezo que constrói para si pela vítima; por uma raiva dela, de quem no entanto gosta, e admira, embora também a inveje. Raiva que tem origem em deslocamentos e condensações de experiências anteriores, sobretudo arcaicas. Sua agressão encontra ‘justificativa’ em eventos pontuais da história do convívio com a vítima, em momentos em que esta o contrariou, ou mesmo o agrediu, muitas vezes por reação provocada pelo próprio agressor. O agressor somente pensa em seus benefícios, não sente prazer em causar sofrimento em sua vítima – porém, seus fins dependem diretamente do sofrimento infligido, necessário para sua manipulação e domínio. Aos olhos do agressor, a vítima ‘merece’ a agressão, a partir do desprezo que ele sente por ela – e mesmo da raiva, que surge da inveja pela vítima ou nos momentos em que esta tenta escapar de seu controle. Esta defesa é tão arraigada e estruturante para o agressor, que se faz em detrimento de seu sentido de realidade, de maneira que ele de fato convence-se de seus motivos, ignorando a maneira como manipulou as reações da vítima, e acreditando no quanto estas reações que, no entanto, ele próprio provocou, são ‘inaceitáveis’ e acreditando, assim, que de fato a vítima lhe fez profundamente mal. Mas, é preciso entender, as reações lhe fizeram mal porque, primeiro, lhe remetem a – e confirmam – agressões sofridas em sua primeira infância e que já foram reafirmadas ao longo de sua história. E segundo, porque diante da agressividade reativa da vítima, ele confirma que esta – e o outro em geral – não é conforme o seu ideal. Seu ideal de ego é posto fora de si e fora de alcance e, sobretudo, como superior ao que seu pai e sobretudo sua mãe puderam ser ou lhe oferecer. Enquanto em alguns casos o indivíduo culpa sua mãe por não protegê-lo das agressões de seu pai, neste ocorre o contrário, o paciente culpa o pai por não ter evitado as falhas de sustentação por parte de sua mãe. Decorre daí que sua idealização do outro, do mundo, o faz crítico e insatisfeito em suas relações íntimas. Tudo lhe pesa. Idealização que ele inconscientemente sente de antemão ser inviável, mas por isso mesmo, por raiva de ser ela inviável, deseja se vingar disso no outro, que supostamente se propôs a ser um substituto do pai, ou da mãe, ou um par perfeito – ou algo assim – e não o é. De modo que a proposta reparadora do outro, as boas intenções do outro em suportar vicissitudes e repará-las, a disposição do outro em entender e superar as dificuldades da relação oriundas das dificuldades psíquicas do parceiro se transformam, aos olhos dele, em uma grande mentira, pela qual o outro deve ser responsabilizado e, assim, em uma agressão a ele, que deve ser vingada. Pois, para o agressor, a não correspondência à idealização do que ele, em sua fantasia, julga ter precisado e que não teve, e que julga precisar ainda, é interpretada inconscientemente como falhas insuportáveis do outro, pois o remetem às falhas ambientais arcaicas que de fato sofrera. O mundo lhe deve, e o outro representa esta dívida, que lhe será cobrada – sobretudo de quem se presta, aos seus olhos, a mentir de que pode ajudá-lo; isto é, exatamente aquelas pessoas que se propõem a ajudá-lo. Entendemos então por que caminhos psíquicos labirínticos a generosidade do outro recebe em troca abuso e o provoca: pois é sentida pelo agressor como uma mentira e, deste modo, como uma agressão, à qual ele apenas está revidando. E de fato funciona como uma agressão, pois o remete à sua dor, às suas falhas básicas, à sua precária integração, ao seu sentimento de menos-valia que tanto o ameaça em silêncio, o revolta, o faz odiar o mundo, duvidar da bondade alheia e ter dificuldade em entregar-se, em amar a vida e o outro, sobretudo em amar aquele que o ama. Se não confia no outro – seja este quem for e, mesmo, a própria vida –, acredita que só pode sobreviver dominando-o, manipulando-o, e escondendo-se. Como é de se perceber, o agressor não tem consciência clara de seu funcionamento psíquico e, quando parece começar a ter, sobrepõe à incipiente percepção de seu próprio funcionamento psíquico, razões que confirmam sua construção defensiva, denegando a realidade. Isso porque não se sente em condições de suportar existencialmente a denúncia ou a desconstrução desta defesa. É aqui que entra, no caso da clínica do agressor, o trabalho de análise, a condução e o manejo do setting por parte do analista, nesta missão praticamente impossível de tratamento do quadro de perversão narcísica. Por mais que este quadro possa ser num certo sentido irreversível, não nos parece interessante trabalhar com diagnósticos (também neste ponto concordamos com Winnicott, 1983, p. 120-121); afinal trabalhamos com pessoas e suas complexidades. São elas que devem conduzir o tratamento e, de fato, muito avanço é possível e, dependendo do caso, mesmo melhoras, extremamente significativas, são possíveis. Devido ao caráter estruturante da defesa perverso-narcísica do agressor, defesa que se contrapõe à melancolia e depressão, ou mesmo a um colapso de cunho psicótico, que seu sintoma tenta compensar, interpretações têm pouco ou nenhum efeito. Se o analista tem como objetivo o tratamento e não a verdade do inconsciente do paciente, perceberá que interpretações tenderão a somente reforçar as defesas do paciente agressor. Tanto quanto, aliás, face aos esforços da vítima em superar os ataques do agressor. Por razões diferentes, nesta relação, interpretações somente não bastam. Para a vítima, é preciso antes reconhecer que ela não é responsável pela agressão – embora seja co-responsável por se deixar enredar na trama da agressão; mas isso somente deve aparecer num segundo momento da condução do tratamento, como dissemos – daí a importância do holding, no primeiro momento, de compreensão mas igualmente, ou mesmo ainda maior, no segundo momento, de interpretação. Para o agressor, por sua vez, é preciso entender que para que ele aceite a interpretação (de que vale para o analista ter o pequeno prazer de ter a ‘boa interpretação’ mas o paciente permanecer ‘resistindo’ a ela?), ele precisará sentir que não ficará totalmente sem chão, que não entrará em colapso, que suportará o vazio advindo da retirada ou dissipação paulatina de suas defesas falso-self. Para isso, é preciso que ele se sinta sustentado pelo holding propiciado pelo setting, pela relação de análise. Para entender este ponto, é preciso sublinhar o fato de que o perverso narcísico não é o que normalmente se imagina de um psicopata; ele não é sem sentimentos, simplesmente frio, mau e cínico; ele apenas, para sua sobrevivência psíquica, por meandros psíquicos que tentamos mostrar, precisa esconder seu ‘interior’, o que ele sente como sua ‘verdade’. Ele se sente por dentro, ou teme se descobrir mau, uma pessoa ruim, inadequado, com problemas; com uma depressão, uma melancolia ou mesmo uma psicose latentes, se sente ou teme se descobrir, ou se confirmar, como valendo menos que os outros. E sente assim porque a falha ambiental inicial foi grave e seu psiquismo se estruturou sem esta confiança primária, arcaica. E toda a sua vida psíquica foi feita sobre um esforço por estruturar-se apesar dessa falha ambiental inicial, por estruturar-se, portanto, de modo a suprir, ou antes, a esconder esta lacuna, que ele vivencia como seu conteúdo interno terrível e ruim, porque não investido por sua mãe quando era bebê – que nada mais é do que sua raiva para com o ambiente que lhe tratou com indiferença, conteúdo destrutivo e extremamente ameaçador, que pode aparecer em pesadelos na forma demoníaca, por exemplo. Ele agora sente esta falta como um déficit vergonhoso e temeroso, que ele deve ocultar de todos para ele próprio poder esquecer. Por isso ‘precisa’ continuamente apoiar-se sobre uma vítima, cujo narcisismo lhe serve para, projetando sobre ela sua raiva por sua deficiência – e a raiva que tem de seus pais por não terem lhe dado o que precisava inicialmente –, preencher a falta do seu próprio. Na clínica do agressor, este tentará espontaneamente – e a todo custo – manipular o analista. Tentará usar a análise para confirmar que ele está sendo bem sucedido em sua tentativa de se esconder, de esconder do outro o seu problema, o seu ‘segredo’, sua falha que é vivida como terrível e que faz dele o pior dos seres – o que ele nega, com o que discorda, mas precisa confirmar que não é, sem correr o risco de ser um dia desmascarado. Injustamente desmascarado. Paradoxalmente, ele não quer que ninguém perceba essa sua lacuna, mas ao mesmo tempo precisa distanciar-se tanto dela que não a admite para si mesmo. Seu primeiro objetivo em análise é convencer o analista – tal como faz com suas vítimas – de que ele sim é uma vítima, do destino, da mãe, do pai. E de sua vítima. Quer convencer o analista de que sua vítima é de fato seu agressor. Não cabe ao analista, num primeiro momento, nem aceitar que o perverso narcísico é a vítima, nem mostrar a ele que é o agressor. E não caberá nunca ‘desmascarálo’, e sim compreendê-lo e tentar aos poucos auxiliá-lo a tornar essas defesas desnecessárias. Também na clínica do agressor, portanto, torna-se mais uma vez indispensável o holding. Poder-se-ia pensar que um perverso narcísico não estabelece vínculo e que o holding seria mesmo impossível nesse caso. Ao contrário, é somente a partir do estabelecimento do holding que o perverso narcísico poderá, muito aos poucos, adquirir confiança de que não precisa se esconder até mesmo do analista; e que, portanto, não precisa manipulá-lo ou enganá-lo. A partir do holding, ele poderá paulatinamente não somente perder a vergonha de ser ‘descoberto’, de ter sua ‘maldade’ desvendada, como sobretudo sentir que não terá um colapso, um surto, uma desintegração caso abaixe a guarda em análise, aceite regredir, abrir mão de suas defesas que lhe custam tanto esforço e tanta vigília para serem, sem descanso, continuamente mantidas. É certamente o desejo de ajudar o agressor desta maneira que move a vítima a enredar-se no jogo do perverso narcísico. Eis mais um motivo para que o analista consiga discernir que se trata de um perverso narcísico, e que conheça este quadro não somente para não se enredar em sua trama, como também para não tomá-lo moralmente, e para entender a importância do holding. Certo, o paciente perverso narcísico tentará com muito talento manipular o analista. Porém, como diz Winnicott nesta passagem crucial: “O analista [...] acredita no paciente e, quando este o engana, acredita nos motivos do paciente para enganá-lo” (WINNICOTT, 1983, p. 216). É preciso aceitar a tentativa de manipulação do paciente, acolhê-la, entender que ela é vivida como necessária para o paciente naquele momento, para poder estabelecer um solo de confiança para que o paciente possa ousar relaxar suas defesas e sair de seu retraimento solidamente erigido ao longo de toda a sua vida. Mais uma vez fica claro que uma interpretação de sua defesa manipulatória, devida a uma identificação projetiva paranóica, de nada adiantará, ao menos num primeiro momento. Como diz Winnicott, o risco de interpretações “está em que as necessidades do paciente em termos de dependência infantil possam ser perdidas de vista” (WINNICOTT, 1983, 155). E não há a menor dúvida de que a origem da perversão narcísica remete ao período da preocupação materna primária. É o trabalho sobre esta fase que é preciso ser feito, e ele se faz pelo holding. Nunca é demais relembrar que o holding, de que fala Winnicott (1983, passim), não significa em nada o que costumamos chamar de ‘colo’. Esta confusão certamente se faz pelo fato de que para o bebê o holding da mãe é antes de tudo uma sustentação física em seus braços. Mas mesmo aí, a sustentação física significa – sem representar, isto é, é vivida afetivamente como – um solo, não um colo: mais precisamente, algo que propicia um sentimento de continuidade psíquica e portanto existencial para o bebê, e, no caso da situação analítica, para o paciente. O holding é vivido como um sentimento de confiança na continuidade de si, mesmo em momentos em que esta continuidade não é garantida pelas defesas psíquicas próprias, erigidas ao longo de nossas vidas para dar sustentação a nosso eu e a nosso self. É precisamente por isso que – a meu ver, sempre, mas sobretudo, em certos casos, como o da perversão narcísica, como já dissemos – a interpretação deve vir a partir do holding e como uma forma de holding. Em outras palavras, o inconsciente se forma a partir de afetos. Mesmo quando as palavras o constituem, o fazem porque e somente quando carregam afetos, isto é, quando estão investidas psiquicamente, libidinalmente, afetivamente. A palavra e, portanto, a interpretação, somente pode causar efeito porque inevitavelmente afeta, mas o efeito causado não necessariamente vai no sentido do que o paciente precisa naquele momento para desenrijecer suas de fesas. É neste sentido que Winnicott considera que “a interpretação correta [pode] ser um trauma, que o paciente tem que rejeitar” caso não a possa ouvir como sua (WINNICOTT, 1983, p. 50). “As mudanças ocorrem na análise quando os fatores traumáticos entram no material psicanalítico no jeito próprio do paciente, e dentro da onipotência do mesmo. As interpretações que podem mudar algo são aquelas que podem ser feitas em termos de projeção”, o paciente as criando ou as aceitando como se as tivesse criado, projetando-as na fala do analista (WINNICOTT, 1983, p. 38). O afeto precisa ser sustentado pelo holding, pois é somente em confiança que o paciente conseguirá relaxar sua guarda, ao invés de ser provocado e chamado a erguê-la ainda mais defensivamente. No tratamento da perversão narcísica, seja do agressor seja da vítima, as palavras, aquelas que se incluem no holding, estas podem, sim, favorecer e facilitar uma compreensão afetiva que, sem o holding, isto é, sem a confiança – e o desta decorrente sentimento de continuidade, não seria possível. As palavras, como parte da sustentação que, de forma diferente, faltou tanto ao agressor quanto ao agredido, devem quebrar esse silêncio que perpetua a perversão. Na clínica do agredido, de forma direta; na do agressor, de forma indireta; mas em ambos os casos, cuidando-se para que a interpretação se dê sem ameaça ao eu do paciente, pois somente sentindo-se em solo firme poderá lentamente abrir mão de suas defesas. É a partir da experiência afetiva vivida no setting, na qual se inserem as interpretações, que algo pode mudar na repetição afetiva e defensiva de um paciente e, no caso da perversão narcísica, seja ele vítima ou agressor.
Posted on: Sat, 26 Oct 2013 03:50:13 +0000

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