Para que nunca caia no esquecimento TARRAFAL “Querido - TopicsExpress



          

Para que nunca caia no esquecimento TARRAFAL “Querido filho: Sinto-me muito doente. Creio que em breve morrerei, mas não quero partir sem tentar fazer-te chegar as únicas coisas que tenho neste momento para te legar – a minha história, semelhante à de muitos outros antifascistas portugueses, e a afirmação do nosso grande amor por ti – meu e da tua mãe. Acredita que só um grande desespero, um grande medo do que te pudesse acontecer, nos levaram a entregar-te a outra pessoa, quando tinhas apenas alguns dias de idade. Não sei se esta carta chegará algum dia às tuas mãos, mas tenho alguma esperança de que isso aconteça, porque o camarada a quem vou entregá-la encontra-se, aparentemente, de boa saúde e já me deu grandes provas de amizade. Se sair daqui vivo, sei que fará todos os possíveis por te encontrar. Há dois anos, eu trabalhava como operário da indústria met alúr - gica e, tal como os meus colegas, sentia-me explorado de diversas for mas – mal pago, a trabalhar um excessivo número de horas e maltratado pelo chefe, que não perdia uma oportunidade de nos humilhar. Já tínhamos feito uma greve, da qual resultara a prisão de al guns trabalhadores e, como não podíamos reunir-nos na fábrica par a discutir a nossa situação e decidir medidas reivindicativas, com binei com alguns colegas juntarem-se na minha, isto é, na nossa casa, porque é também a tua. Tu tinhas acabado de nascer e a tua mãe não se encontrava muito bem. Tinha sofrido hemorragias e encontrava-se muito fraca. Quando eu estava à espera deles, um vizinho veio avisar-me de que um dos colegas nos tinha denunciado e aconselhou-me a pôr-me em fuga, pois era provável que a PVDE (Polícia de Vigilância e de Defesa do Estado) aparecesse e nos prendesse. Pedi-lhe, então que, do lado de dentro do muro do seu quintal, fizesse sinal aos colegas para que não se dirigissem à minha casa, meti num saco algum pão, fru ta, queijo e conservas e preparei-me para fugir. Mas a tua mãe 111 re cusou-se a ficar sozinha contigo – tremia e chorava descontrolada - mente. A hora marcada aproximava-se e não havia tempo a perder. Embrulhámos-te numa manta e fugimos por montes e vales, até chegarmos a uma velha cabana, onde passámos o resto da noite e parte do dia. A tua mãe sentia-se exausta e o leite secou-lhe no peito. Sen tíamo-nos desesperados, sem saber o que fazer e tu choravas in interruptamente, quando uma jovem de expressão bondosa entrou na cabana. O seu olhar era tão condoído, denotava uma tal compaixão, que não hesitámos em pedir-lhe que te levasse. Ficámos com a sua mor ada e prometemos ir buscar-te mal a situação o permitisse. Infe liz - men te, a tua mãe piorou muito rapidamente, teve grandes hemorragias , e acabou por morrer enquanto procurávamos chegar a um hospital. Imediatamente após o funeral, fui preso, torturado pela polícia política, que pretendia extorquir-me informações sobre colegas de trabalho, que, segundo os torturadores, eram militantes do Partido Comunista Português (facto que eu desconhecia), e enviado para o Fort e de Caxias. Algumas semanas depois, sem sequer ter sido julgado, fui enfiado num navio e enviado para a Ilha de Santiago, no Ar quipélago de Cabo Verde, para o Campo de Concentração do Tarrafal, cuja ex istência eu também desconhecia. É onde me encontro agora e don de não sairei vivo. Foi por tudo isto que nunca pudemos ir buscar-te, mas nunca passei um dia, uma hora, em que não pensasse em ti. Quanto à tua mãe, morreu a pronunciar o teu nome. Foi ela quem es colheu para ti o nome de Miguel; eu queria que te chamasses José, como eu, mas ela conseguiu convencer-me com os argumentos de que Miguel era um nome mais bonito e, além disso, era o nome de um dos maiores artistas de sempre, Miguel Ângelo. Há alguns dias, fui atacado pelo paludismo e depois pela biliosa, que, sem tratamento adequado, costuma matar em três ou quatro dias; ontem, comecei a urinar sangue e hoje já não consigo sequer urinar; colocaram-me uma algália, mas… nada; os rins devem ter paralisado. Já morreram dezenas de prisioneiros com esta e outras doenças. Mas pr ometo-te que, enquanto me restar um mínimo de forças, gastá-las-ei a con tar-te o inferno que isto é. De acordo com relatos de outros pri sioneiros, que se encontram aqui há muitos anos, já foi bem pior, desde a abertura do campo, em 1936, e até ao fim da segunda grande 112 guerra. Com a rendição da Alemanha e o fim da esperança salazarista na vitória do nazismo, diminuiu a desumanidade com que éramos tratados, mas o estado de saúde geral está muito degradado e não sou o único a ter perdido a esperança de voltar ao Continente com vida. Ultimamente, o trabalho que nos obrigam a fazer não tem sido tão duro, o rancho melhorou e a água que nos fornecem também; mas, seg undo me têm contado, durante muitos anos consumiu-se água in quinada, sem que deixassem fervê-la, o que causava terríveis doenças, e a comida era de tal forma intragável e malcheirosa que, por vezes, nem os cães a queriam comer – arroz a saber a mofo, carne de porco com triquinose, carne de bode não capado e peixe salgado de sabor desagradável eram algumas das ementas mais frequentes. A propósito, apareceu aqui um rafeiro esquelético e de olhos tristes, ao qual me afeiçoei. Partilhava com ele as fracas refeições e treinei-o para escapar aos guardas, que, sempre que o viam, faziam menção de o pontapear. Ajudou-me muito a suportar o profundo desgosto da perda da tua mãe, da distância em relação a ti e de me encontrar neste lugar de tortura e de morte. Acariciá-lo era a única forma de dar e re ceber algum carinho. Mas até isso me foi tirado: o cão foi morto à pancada pelo guarda mais cruel que cá se encontra. Foi uma cena de tal forma macabra que outro carcereiro o enfrentou e segurou, para impedir que ele me agredisse, quando tentei agarrar o cão. Quem se insu rgia era espancado ou encerrado na “frigideira”, um bloco de ci mento, sem janelas, construído para torturar os insubordinados, que, com o calor insuportável, saíam de lá, invariavelmente, para a enfermaria, onde os medicamentos escasseavam e o médico de serviço fingia que tratava os doentes. Na verdade, os objectivos do envio dos prisioneiros para o Campo eram o de os suprimir, o que nos era dito frequentemente por carcereiros e directores, e também o de espalhar o terror, desmotivando atitudes subversivas por parte de quem tinha conhecimento da sua existência. Embora, legalmente, se chame uma colónia penal, criada para presos políticos e outros, na realidade, trata-se de um campo de concentração, destinado a matar lentamente quem vem para cá. 113 Neste momento, acabaram de me dar água e de me injectar soro; a solidariedade dos colegas é grande; tentam animar-me, mas eu sei que está a chegar o fim. Há cá três grupos distintos – o dos comunistas, o dos sindicalistas (ambos organizados) e outro constituído por pessoas menos politizadas, como eu, que muito têm aprendido aqui, pois existe uma atitude pedagógica por parte dos mais esclarecidos. Há homens que nem percebem muito bem por que razão cá vieram parar e, embora sejam excepções, há ainda aqueles, mais fracos ou de pior carácter, que se colocaram do lado dos guardas, para sobreviverem, e tornaram-se tão cruéis como eles, funcionando como seus cães de guarda. Mas a grande maioria é constituída por homens muito corajosos e dignos, alguns dos quais com grande cultura e conhecimentos técnicos. Há aqui gente vinda da prisão de Caxias, como eu, do Aljube, de Peniche e de A ngra do Heroísmo, como foi o caso de Bento Gonçalves, se cretário-geral do Partido Comunista Português, que cá morreu há alguns anos. Existem prisioneiros que já se encontram neste campo de tortura e de morte há mais de dez anos e alguns pela segunda vez. No início, não eram permitidos sequer contactos com os cabo- -verdianos, a quem tinha sido dito que os prisioneiros eram perigosos. No entanto, com o passar dos anos e sob a vigilância de guardas mais tol erantes, foram-se estabelecendo contactos e começaram a aperce ber- -se de que tínhamos sido caluniados. Muitos deles passam fome, an dam esfarrapados, são maltratados pelos brancos e morrem prematu - ramente. Também eles, por vezes, são vítimas dos guardas, que os ameaçam e chegam mesmo a espancá-los, para os obrigarem a venderem os produtos mais baratos. Têm passado por cá directores e gua rdas sem escrúpulos, criminosos que aproveitaram a situação, usand o a violência, para satisfazerem os seus interesses. A exploração das gentes locais era uma das formas de obterem lucros. Outra, utilizada por um dos directores que por cá passou, o mais ganancioso e cruel de todos, foi a exploração da cantina, onde vendia aos prisioneiros produtos alimentícios de boa qualidade. Quem recebia dinheiro da família não conseguia resistir a comprá-los, pois era a única forma de se alimentar razoavelmente. E, muitas vezes, compravam-nos para os darem aos camaradas que se encontravam doentes ou mais debilitados. Como já te disse, têm passado por aqui muitos prisioneiros solidários, 114 dig nos e corajosos, e quanto mais o demonstram tanto mais são odiados por directores e guardas cobardes e brutais. Também houve alguns que se acobardaram e renegaram a sua luta. A esses chamamos os “rachados”, porque perderam a sua integridade. O actual director é um pouco mais humano do que os anteriores; não nos retira os livros, dá-nos lápis ou canetas para escrevermos aos familiares e não nos obriga a trabalhos pesados inúteis, como acontecia anteriormente. Houve períodos em que não era permitido receber ou escrever cartas e as encomendas ou dinheiro enviados por familiares eram apreendidos. O violento trabalho nas pedreiras, sobretudo de tarde, em que o calor é asfixiante, a má alimentação e a escassez da água que nos é facultada, quer para bebermos, quer para nos lavarmos, são razões suficientes para derrubar qualquer homem, por mais forte que seja; isso, aliado à p roliferação de mosquitos, varejeiras, moscas e matacanhas (espécie de pulgas que se alojam nos pés, sendo necessário descarná-los para as arrancar), destrói, forçosamente, a saúde e o ânimo de qualquer ser humano. Por isso, quando guardas e directores afirmavam que quem vinha para o Tarrafal era para morrer, não se tratava apenas de ameaças. Esse foi o verdadeiro objectivo da criação deste campo. Tinha tanto para te dizer, mas o carcereiro está a aproximar-se e, além disso, a febre está a subir. Perdoa-me, filho, mas estou sem forças para prosseguir. Nunca te esqueças de que foste desejado e muito amado nos breves dias em que connosco viveste. Teu pai José Bravo” in "A Substância do Tempo" de Isabel Pereira Rosa, Chiado Editora, 2011
Posted on: Thu, 05 Sep 2013 08:59:30 +0000

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