Siri na lata: três histórias de candidatos a TDAH por Beatriz - TopicsExpress



          

Siri na lata: três histórias de candidatos a TDAH por Beatriz de Paula Souza Guillermo era um menino levado da breca. Puxava os bigodes do cachorro, cutucava os coleguinhas, comia pasta de dente, subia no telhado, ligava a furadeira, não parava na sala de aula, despencava da mangueira, brigava na escola, fazia perguntas inconvenientes… ô moleque infernal! Um dia a professora da escola (de padres) que frequentava passou à classe uma redação: três coisas maravilhosas que Deus fez. Guillermo escreve: três bananas. Anuncia à mestra espantada: “Professora, acabei!”. Sai da classe e vai para a quadra, pois sabe que seus colegas vão demorar para terminar e não quer ficar esperando paradão. É sua vez de ficar espantado quando descobre que levou um zero na redação, redondo como um biscoito de polvilho. Briga com a professora: “mas tá certo!” E a chama de burra, o que motiva sua imediata ida à diretoria, para o já costumeiro carão. Episódios como esse vinham fazendo de Guillermo uma figura controversa na escola: era amado e odiado. Amavam sua vivacidade, seu espírito inquieto como seu corpo, sua criatividade, as situações engraçadas que criava. Odiavam o tumulto que gerava, o desrespeito diário às normas escolares, o incômodo que causava aos que queriam estudar direitinho, o desbocamento, o mau exemplo. Uma unanimidade: era famoso, uma celebridade local. Sua mãe, D. Neusa, cansou-se de ir à escola levar carão também. Numa primeira fase, conversava e repreendia o filho arteiro. Na segunda, batia e punha de castigo. Na terceira… passou a mandar que fosse todo dia jogar futebol. Todo dia. Tinha um campinho não tão perto de casa, mas Guillermo já tinha idade para ir para lá a pé. E voltar. “Mas mãe, hoje não tem jogo”. “Não faz mal, vai assim mesmo”. Na escola, intrigados, percebiam que o garoto andava mais sossegado. E menos bravo. Chamam novamente a mãe dele para conversar. Ela vacila, dá uma desculpa para não ir na primeira chamada, falta à segunda. Está cansada de broncas e acusações, sutis ou nem tanto. Não é a mãe relapsa que lhe acusam de ser. E não aguenta mais falarem mal do seu filho. Saco! Na terceira, resolve ir para ver se para essa amolação. “Mãe, o que você fez com seu filho?”, pergunta a diretora. “Como assim?” “Ele melhorou o comportamento. Não virou nenhum anjinho, mas agora dá pra levar”. Aliviada, D. Neusa conta o seu método. A diretora fica pensativa. Dispensa D. Neusa e vem-lhe à mente outros alunos irrequietos, às vezes agressivos, que a escola teve e tem. Será que funcionaria com eles? E se a própria escola aproveitasse mais seu espaço gigantão para as crianças correrem, brincarem…? No recreio, a histeria delas dá até nervoso. E se tivessem mais tempo para isso, mais momentos? Ah, muito complicado. Como vai ser para cumprir a grade curricular? Foi só um pensamento, não dá. Deixa pra lá. Guillermo foi crescendo, sempre meio problemático na escola. Agora, além do futebol, descobrira outra paixão: a escalada em rocha. A aptidão e gosto, que se revelava quando pequeno na escalada de armários, telhados, vãos de porta, até da geladeira, encontra a grandiosidade e os amplos espaços das montanhas rochosas em ambientes naturais. As chaminés, como a das Prateleiras em Itatiaia ou da Agulha do Diabo, na Serra dos Órgãos, no Rio de Janeiro, são desenvolvimentos do que fazia para subir o vão das portas! Costas e mãos em uma parede, pés na outra, subir, subir, subir, até bater o coco encima. As fendas, como na Pedra do Baú, em São Paulo, ou no Pão de Açúcar, no Rio, não eram tão difíceis para quem tinha escalado a geladeira tantas vezes quando pequeno, pelo friso puxador vertical da porta. Quando ninguém estava vendo, claro. Guillermo descobriu uma coisa inesperada: que gostava de estudar! Na escola não, que era muito chato. Não aguentaaaava aquelas loooongas aulas expositivas quase o tempo todo. Aquilo ia dando uma fervura por dentro, uma agonia. Mas descobriu as livrarias, a biblioteca e, mais tarde, a internet. Fuçava, descobria muitos assuntos interessantes, respostas para muitas perguntas que tinha e perguntas que nunca havia feito ou se feito. A inquietude corporal era também intelectual! Descobriu o movimento das sufragistas americanas. Descobriu as placas tectônicas e seus movimentos. Os números triangulares e a teoria das supercordas. O mito da caverna de Platão, o conceito de infinito, o mistério da Santíssima Trindade (que continuou misterioso). A injustiça entre os homens, a luta de classes, o cenário de destruição da vida planetária em que ela se desenrola. Esta história é inspirada em duas pessoas que existem. É um ajuntado, com costuras bordadas, de fragmentos de seus percursos pessoais que ouvi aqui e ali. Guillermo Arias Beatón é o presidente da Cátedra Vigotsky da Facultad de Psicologia da Universidad de La Habana. Silvério José Nery Filho é presidente da Federação de Montanhismo do Estado de São Paulo. Agora, uma outra história. Curta, pois é de uma criança que ainda não cresceu. Olavo foi fazer avaliação com uma psicóloga. Mas não foi o primeiro profissional de Saúde que o avaliou. O primeiro foi um neurologista. A escola que mandou. Ele não se concentra nas aulas e tarefas na classe, não para na sala de aula, cutuca os colegas, briga com eles e com a professora. A diretora, a coordenadora e a professora informaram-se, com colegas de outras escolas e também em revistas e livros de Educação, de que estamos na década do cérebro. Neurologistas e psiquiatras hoje são a fonte de soluções para problemas que antes faziam sofrer crianças, pais e professores, porque não se percebia seu fundamento biológico. Dizem que são agora rápida e facilmente eliminados com diagnósticos e tratamentos novos de problemas cerebrais. Tem um que está dando como praga na criançada de hoje em dia: o Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade, o TDAH. Mas tem jeito, um santo remédio. Uma ritalinazinha todo dia de aula e pronto! Olavo? Ah, está com muito jeito de TDAH. Vai para o neuro. A família procura um profissional que um amigo recomendou, tivera uma boa experiência com ele. Dr. Marcius espera seu novo paciente na hora marcada. Quando a porta de sua sala se abre, seu olhar, automaticamente voltado para o meio da fresta, tem de baixar para encontrá-lo. Entra uma criancinha de quatro anos. Quatro. O relatório da escola e a descrição que os pais de Olavo fazem dele encaixam-se nos indicativos diagnósticos de TDAH, um feixe de comportamentos arrolados em um inventário chamado SNAP-IV. É uma lista do que seriam sintomas daquele transtorno; atitudes como “não consegue prestar muita atenção a detalhes ou comete erros por descuido nos trabalhos de escola ou tarefas”, “mexe com as mãos ou com os pés e se remexe na cadeira” e “tem dificuldade de esperar sua vez”. É, ele é assim mesmo. No consultório também. Brinca com os clips, fuça o estetoscópio, não fica quieto na mesa de exame. Mas esse inventário de comportamentos tem uma coisa (entre outras) que lhe incomoda: não diz para que idade é. Será que serve para uma criancinha de quatro anos?? Não encontra, no exame clínico, qualquer sinal de alteração. Pedir um exame de neuroimagem caríssimo, com aparelhagem sofisticadíssima e rara como o SPECT ou o PET? Pensa, para além da literatura científica, que Olavo não lhe parece muito diferente de um punhado de crianças de quatro anos que conhece. Decide, antes de pedir o exame, mandar para a psicóloga. Helena, a psicóloga indicada e procurada, vem passando por uma mudança em sua abordagem. Insatisfeita com a linha mais descritiva e psicométrica com a qual vinha atuando, tem passado a integrar sua experiência anterior, de professora, à da atual profissão. Assim, quando recebe Olavo, decide pesquisar não apenas o menininho, mas também seus ambientes, modos de vida e história, buscando relações e sentidos. Seu passado de professora a leva a fazer algo raro na profissão: pesquisar as condições escolares, ao invés de satisfazer-se com a descrição do comportamento do menininho na escola. Descobre uma escola pequena, de ambientes apertados e abafados para o número de crianças que abriga, e com uma proposta e prática pedagógicas para as classes de pequenininhos que mais parecem típicas de Ensino Fundamental: ficam longos períodos sentados nessas salas e têm lição de casa, geralmente envolvendo alfabetização e aritmética. Em casa, outro lugar pequeno e apertado, as coisas não andam bem. Estressados com as constantes reclamações escolares sobre seu único e precioso filho, os pais andam brigando. Olavo percebe, culpado, que é o estopim de muitas dessas desavenças, pois várias são sobre como educá-lo. Helena comunica, ao neuro, à família, à escola e (essencial) ao próprio menino, que não vê indícios de qualquer transtorno neurológico nele. Baseada, claro, em outros dados, situações e informações também. Orientações? Bom, várias. Mas as principais eram desdobramentos dos mesmos temas: espaço! Corpo! Brincadeira! Será que a diretora do Guillermo conseguiu inventar uma escola em que movimentação, brincadeira e aprendizagem não precisem andar separados, para o Olavo estudar nela? Será que os pais dele vão conseguir administrar a vida para encontrar maneiras de seu filho querido poder achar lugar para sua inquietude de corpo e alma? Já pensou se Guillermo e Silvério tivessem quatro anos agora? portaldoeducador.org/siri-na-lata-tres-historias-de-candidatos-a-tdah/
Posted on: Thu, 31 Oct 2013 12:38:05 +0000

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