“Um império fundado pelas armas tem necessidade de se defender - TopicsExpress



          

“Um império fundado pelas armas tem necessidade de se defender pelas armas.” Montesquieu Damasceno Tendo em conta que os seus progenitores pertenciam a uma sociedade organizada e aparentemente civilizada, batizaram-no, iniciando-o desse modo na instituição religiosa a que já os seus pais e avoengos tinham pertencido, integrando-o com esse ato formal na comunidade à qual para todo o sempre ficaria ligado, mesmo que ele, anos mais tarde, não concordasse com essa maneira de fazer as coisas. Aceitando e assumindo esta obrigação social, os pais do nosso personagem nada mais fizera senão obedecer a leis tradicionalmente estabelecidas – havia mais de oitocentos anos e profundamente enraizadas nos costumes do povo. Deste modo os progenitores de Damasceno tradicionalmente habituados às velhas formas educativas - mão pesada e pouco sorrir - delas não abdicavam, pois pensavam que essa era a melhor fórmula de ensinar aos mais pequenos a realidade da existência. Assim, enquanto tiveram poder sobre o nosso homenzinho, desse modo e severo, mas prático e saudável conceito, o educaram. Transportado para este mundo pela senhora Marta, uma mulher bonita e corajosa, robusta e saudável, o nosso herói cresceu no seio de uma família de gente humilde, honesta, bem-educada, laboriosa, e por todos apreciada. Apareceu na Terra um ano depois do fim da Segunda Guerra mundial, horrível acontecimento que causou mais de cinquenta e cinco milhões de vítimas. Os tempos eram difíceis mas o nosso menino sobreviveu. Viu pela primeira vez a luz bendita do dia no lugar do Monte de Baixo, freguesia de S. Pedro de Riba de Ave, região minhota de enorme potencial económico, nos tempos em que quase tudo por aquela terra era indústria de confeção e transformação de tecidos e lanifícios e conhecida em muitas partes do mundo pelos seus afamados vinhos verdes. O Minho constituiu nos primórdios da nacionalidade portuguesa, o núcleo principal do Condado Portucalense. O seu território, desintegrado do reino de Leão, formou a província de Entre-Douro-e-Minho, cujos limites sofreram ligeiras variações no decurso dos tempos. Depois e durante longos anos, a província do Minho compreendeu os distritos de Braga e Viana do Castelo e uma parte do distrito do Porto. Quando se procedeu à última divisão regional (1947) a província do Minho ficou abrangendo apenas os distritos de Viana do Castelo e Braga, com uma superfície total de 4.838 km² e a população de 867.296 habitantes. Isto em 1994. Da convergência de propícias condições orográficas e climatéricas resulta a beleza dos verdejantes campos e vales desta região, uma das mais lindas e pitorescas do País. Produz magníficos vinhos, cereais, legumes e frutas e é nela muito importante a criação de gado. São famosas as suas romarias, sempre animadas pelos graciosos cantares da região e pelo vivo colorido dos trajes pitorescos dos seus habitantes em dias de festa. Na humildade daquela casa comia-se mal, todavia os componentes do agregado familiar eram todos fortes e sadios. O pequeno-almoço era composto por uma malga de caldo branco, confecionado com água a ferver, uns grãozinhos de arroz, um punhado de massinhas, uma cebola picada, uma pitada de sal e um fiozinho de azeite virgem. Esta primorosa gulodice... para ser devidamente apreciada, deve ser ingerida na companhia de um suculento naco de broa de milho do norte de Portugal, e aconselha-se especialmente a gente muito laboriosa e que no momento do repasto... esteja com fome. Aos domingos havia cevada com pão de trigo. Mas triguinho estaladiço e de cor amorenado, era apenas consumido nesses dias mui sagrados, pois que esse género de alimento, segundo dizer da dona Marta, era coisa de gente rica... Normalmente ao almoço comia-se um prato ligeiro de arroz, ou massa guisada com um bocadinho de carne, coisa de tal modo rara que Damasceno tinha o costume de deixar tal tesouro... na borda do prato. Primeiro apreciava, com uma certa tristeza, a sua pequenez, depois, quando já não havia mais massa ou arroz a consumir, ingeria a tal riqueza com um prazer incomensurável. A esse frugal alimento, por aquele tempo e naquela região, dava-se o nome de presigo. À noite, ao jantar, comia-se um consistente caldo de farinha e couves-galegas, da horta laborada pelo senhor António Baltazar, acompanhado de um ou outro peixe que a corajosa senhora Marta não conseguira vender naquele dia, que ela confecionava sem grandes cuidados, e que por todos equitativamente dividia. Quando se tratava de prateadas e gordas sardinhas, uma delas, acompanhada de broa de milho, dava para dois rapazes dos mais pequenos. O pai do nosso amigo era um homem bom. Apreciado pelo valor do seu trabalho e pela honra da sua palavra, habilidoso, deitava mão a tudo o que de trabalho surgia. Tanto solava uns tamancos à velhota, como plantava batatas, podava as vinhas dos vizinhos e ainda fazia trabalhos de carpinteiro e pedreiro, profissões que aprendera em terras do Brasil. Homem trabalhador, não olhava ao tipo de serviço que se lhe apresentava. Importante, era ganhar a vida honestamente, de modo a criar os filhos com um mínimo de conforto. Contudo, embora com vizinhos e conhecidos mostrasse um caráter brincalhão e até por vezes gostasse de narrar o seu chiste, em casa era homem de poucas palavras e não permitia muita liberdade à sua progenitura. A casa era uma construção térrea dividida em três partes. Em cada uma destas partes habitava uma família. Com as portas e janelas viradas para a rua era a casa de Damasceno e do senhorio, na parte de trás da mesma vivia outra gente. Frente à porta da habitação do senhorio existia um pequeno pátio de pedra. Depois que começara por si só a dar os primeiros passos, o menino habituara-se àquele lugar que raramente era utilizado como passagem. O menino sentia-se naquele cómodo lugar como pequeno reizinho. Quando nenhum dos irmãos se encontrava na residência e se por acaso o tempo o permitia, Damasceno passava por ali tempos infindos, entretido com os seus jogos e brincadeiras, normalmente sob o olhar vigilante da mãe que de cinco em cinco minutos vinha à porta para se certificar que tudo estava bem com o seu sapinha... Era assim que amorosamente ela o apelidara durante os primeiros anos, por ele ser mais gordinho que o normal, e a verdade é que naquela região o Zé-povinho tinha por costume dizer sobre os gordos: Aquele está gordo como um sapo! A dona Marta, num qualquer instante de boa disposição e enquanto lhe enfiava a comida, ao reparar como o seu menino estava a ficar forte, refletiu por acaso, deduziu e... Sapo, sapinho, sapinha! O povo na sua simplicidade é assim, não há nada a fazer, e ainda bem, quando não, os ditados e anedotas brejeiras, o folclore na sua generalidade, deixa de existir e é pena. A partir desse segundo batismo... os irmãos, vizinhos mais chegados à família e mesmo o seu admirado progenitor, apelidavam o nosso pequeno herói de Sapinha e assim ficou até ao dia em que abalou da aldeia para ir trabalhar. O tempo rolou, mas o costume de se instalar no pátio em pedra do senhorio, ficou. Já rapazinho, a frequentar a segunda classe da instrução primária, nos meses tórridos de julho e agosto, nas horas de lazer, pegava nos seus brinquedos e ia para o tal pátio. Todavia, nesses meses de forte calor, os brinquedos seguiam com ele apenas por hábito pois a verdade é que o seu desejo não era brincar. Como sempre, o menino acomodava-se de pés assentes sobre o pátio e de costas no degrau que dava para a porta da casa, fechava os olhos e recebia com um prazer ilimitado o fulgor do sol da tarde; depois esperava que o corpo aquecesse e aos poucos, uma modorra embriagante se apoderava dele fazendo desse modo que ele fosse transportado para lugares longínquos, onde o sonho de aventura e a pureza do seu cérebro infantil o levava, permitindo-lhe viver instantes de incontida felicidade. Ao contornar a dita casa, a caminho da horta - um espaço imenso, sempre repleto das novidades da época - havia um tanque para confecionar o sulfato que servia para aspergir as vinhas a fim de as preservar do míldio, do lado direito existia um poço coletivo e um tanque onde a senhora sua mãe lavava a roupa, em frente e ao redor da casa havia ainda uma ramada de altas videiras, que no tempo certo produziam uns cachos de uvas de aspeto apetecido, uvas de bagos enormes e cor matizada a que as pessoas alegre e maliciosamente apelidavam de uvas de colhão de galo e face à porta da casa do senhorio existia o tal pátio de pedra, coisa que não havia na habitação de Damasceno e cuja porta, normalmente, só era aberta no dia de Páscoa para receber o cortejo do senhor abade. Os donos do lugar serviam-se de uma outra entrada que possuíam na parte das traseiras. Na retaguarda da casa existia um curto espaço, dito loja ou cocho, que servia para guardar o porco e os coelhos, e onde o senhor António tinha uma pequena banca de trabalho. Damasceno brincava no chão de terra batida frente à porta do tal cocho. Naquele instante, com um serrote aparentemente bem seguro na mão direita e com a esquerda a segurar a madeira, o senhor António praticava a arte de carpintaria. De repente um grito seco numa imprecação dolorosa contra inesperado infortúnio, fez estremecer de receio o pequenito. Olhando, viu seu pai agarrado à mão esquerda com o sangue a correr por entre os dedos. Depois da instintiva maldição contra os mafarricos que lhe tinham desviado a atenção do que estava a fazer, o senhor António pegou num velho farrapo, embrulhou com ele a parte da mão estropiada e continuou o trabalho como se nada lhe tivesse acontecido. Damasceno, olhos arregalados, fitava o pai numa interrogação muda de espanto e ouviu-o dizer: Não é nada rapaz... Não é nada! Duas semanas depois, estava o nosso menino a brincar no terreno junto ao poço, quando reparou em três homens com vestes andrajosas e aspeto bruto e fanfarrão, que discutiam e elevavam a voz contra o seu progenitor, no entretanto, quando a cena parecia ir agravar-se, Damasceno ouviu seu pai exclamar pausadamente: Esperem um bocado que eu vou à loja buscar uma coisa a fim de resolvermos, de uma vez por todas, esta questão! Passado instantes viu o seu pai regressar com uma sachola na mão, fazê-la girar no espaço e pôr em fuga os adversários que tinham conseguido enfurecer o seu herói, coisa que ele jamais presenciara. Com verdade, é bom ressalvar que foram estes circunstanciais detalhes da existência que formaram o caráter e o arrojado porvir da personalidade do nosso personagem. O tempo passou. O aglomerado familiar aumentava, na média nascia um rapaz ou rapariga em cada dois anos. Os salários dos operários nas fábricas, embora certinho, não eram muito elevados para quem tivesse vários filhos. Numa noite quente de junho, ao recordar a magra refeição que ao jantar fora servida, o chefe da casa pensava no que poderia fazer para ultrapassar aquela miserável situação em que todos viviam. Assim, pensou por bem continuar a suportar o cotão da fábrica, mas nas horas livres e fim de semana, poderia aproveitar os conhecimentos que possuía para trabalhar também como jornaleiro para quem dele necessitasse, deste modo talvez fosse mais fácil sobreviver. Na verdade ele sentia-se ainda muito jovem e forte, por isso julgou que a mais-valia adquirida nesses pequenos serviços extras, poderia modificar para melhor as coisas lá por casa, e se assim o pensou melhor o fez. Por essa altura, com intuito de ajudar, a dona Marta falou com o seu homem e de comum acordo, três vezes por semana, ela começou a fazer a viagem na camioneta da carreira entre Riba de Ave e Porto, a fim de ir à lota de Matosinhos buscar peixe, mas a ideia era apenas transportar pescado que na região não tivesse concorrência, pois sardinhas e carapaus era coisa que todos os dias se poderiam adquirir no mercado local. O interessante era trazer o pescado dito branco. Assim, a corajosa senhora, saía de casa por volta das sete horas, e carregada com dois baús de pescada, marmota, badejo, polvo e outros que tais, chegava à aldeia ao meio-dia. Depois ia vender o produto aos solares dos senhores do lugar e arredores, à Estalagem S. Pedro, Hospital Narciso Ferreira, e uma ou outra encomenda, feita por pessoas da terra, que tinham algum familiar adoentado, ou gente idosa mais necessitada de tal alimento, e por douto conselho precisavam de consumir determinada qualidade de peixe. Espírito forte e bastante imaginativo, o nosso menino bem cedo começou a mostrar provas da sua boa constituição. Por vezes, nos intervalos das aulas, os companheiros de então rodeavam-no e pediam-lhe para contar uma história das várias que ele já memorizara no seu pequeno cérebro. Contente com o auditório que o fitava ansioso, Damasceno principiava o seu conto e todos eram realmente felizes. Pouco tempo depois de principiar a ler o nosso menino já lia livros com longos textos. Obras que o seu vizinho Lino Machado lhe emprestava. Este Lino era um jovem dos seus vinte e cinco anos que adorava tocar violão, e quando o fazia entoava canções de Harry Belafonte, Pedro Infante e outros populares talentos da época. Por desgraça o Lino era manquinho e para se deslocar era obrigado a usar muletas. O Lino era um personagem típico e muito querido pelos residentes do lugar, tinha uma cabeleira loira, longa e ondulada que usava pelos ombros, à semelhança do célebre Búfalo Bill. Realmente amigo de Damasceno, o Lino sentia enorme satisfação em falar com o nosso herói. Fora este nostálgico e humilde moço aleijadinho que o ensinara a tocar viola e que, alguns anos mais tarde, lhe explicou como se deveria escrever uma carta de amor... A carta principiava sempre assim: Jovem querida. Pela primeira vez que lhe escrevo uma carta, sinto em mim que vou sofrer um grande desgosto, mas seja o que Deus quiser. Este Lino, tal como o Quim Janota, o Zeca Matos, o Zeca Guimarães, o Gusto Janota e outros do lugar eram de tal modo dedicados e amigos do nosso pequeno personagem, que por vezes este se sentia diferente dos demais rapazinhos do lugar. A verdade é que, de certo modo, estes adolescentes mimavam e protegiam o nosso menino. Por vezes até o levavam ao cinema a carrachucho, o que na aldeia de Damasceno queria dizer, empoleirado sobre os ombros. Na verdade o nosso rapazinho possuía algo de invulgar que o distinguia das outras crianças do seu tempo, e era talvez por essa razão que esses vizinhos, amigos dos seus irmãos mais velhos, tinham por ele um cuidado fora do comum e sempre que o encontravam falavam com ele e sempre tentavam ensinar-lhe qualquer coisa de novo. Por que seriam eles tão amigos, seria por que sentiam que dentro daquela cabecita de criança existia qualquer coisa de incógnito, estranho e incompreensível ou tinham conhecimento de qualquer segredo que lhes causava pena e tentavam amenizar com o seu carinho a tristeza que lhes ia no coração por compaixão de menino tão genial?
Posted on: Mon, 01 Jul 2013 09:24:01 +0000

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