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Um texto bruto Confissão Corpu Christi. Não havia mais o que ser feito: enquanto falávamos, a morte alcançava o que julgávamos inalcançável, e tudo se desfazia sem que se fizesse perceptível. Estrelas morriam, e víamos admirados elas caírem rumo ao invisível- para onde iam? Invisível não queria dizer lugar nenhum, mas sim lugar além de nosso alcance limitado. Para nós, tudo o que não podia ser visto era inexistente, e o que não podia ser explicado era mistério: sempre queremos definir chegando a um alcance do que é indefinível e inalcançável. Enquanto falávamos, a goiabeira naquele quintal onde jazíamos deitados sobre um colchão fino tornava suas pequenas goiabas verdes em maiores e maduras, mas não sabíamos. Não sabíamos que não era apenas morte, e que se as estrelas despencavam eram as que talvez precisassem alimentar alguma coisa que tivesse fome, assim como as goiabas maduras cairiam para nós- mas não naquela noite. Devoramos, devoramos e devoramos para no fim sermos devorados. E naquela noite devorávamos o tempo e ao mesmo tempo o tempo nos devorava, mas não doía. A dor viria depois, quando já não tivéssemos mais o que ser devorado. Disso tenho medo, e sei que você também tem. É uma espécie de morte incompleta, consciente, como sentir a asfixia no caixão e os vermes devorando a pele. Não havia mais o que eu pudesse fazer: enquanto falavas, aos poucos penetravas em mim. Penetrava-me pelos olhos com os teus- tão fortes e tão devastadores-; penetrava-me com tuas palavras- tão loucas, de uma sobriedade ébria que jamais conhecera em alguém. Penetrava-me até com teu hálito doce, quando falavas mais de perto, ou suspiravas não sei por quê. Ousavas me tocar, e eu ousava permitir que tuas mãos, por brincadeira, escorressem por minhas coxas, meus braços, meu rosto. E eu me odiava por retirá-las com falso resigno, porque ali também havia outras pessoas que talvez não compreendessem, porque quase nunca compreendem. Mas o que havia de tão incompreensível ali? E enquanto você enrolava num papel teu fumo barato eu esperava, ansioso, aquela fumaça solta no ar, que vinha diretamente de dentro de ti para que eu também pudesse tragá-la, roubá-la do vento, roubar-te um pouco de ti. Desses dias datam meus primeiros cigarros, porque queria compartilhar dos mesmos prazeres, provar dos mesmos venenos. Queria o beijo de um cigarro dividido, saliva tua e saliva minha umedecendo o filtro. Depois disso, o cigarro fora a desculpa, a ponte que eu atravessava para chegar a você. Ligava pra você, chamava para sair. Tenho cigarros, e você dizia Tudo bem. E quando era madrugada, acabado o vinho e o maço, saíamos pela rua em busca de guimbas, enquanto conversávamos, ou enquanto não falávamos nada. Falavas, falávamos todos nós. Queríamos as verdades, mas tu dizias que embora disséssemos todas as possíveis verdades naquela noite, nenhuma seria a verdadeira, porque simplesmente verdade absoluta era impossível. Havia um limite para nós, e tal limite era Deus. Eu disse que nossa verdade, por mais que seja insana ou inverossímil é nossa, e aquele que busca além da própria verdade uma resposta alheia, é que não está convicto do que diz. Ficamos então calados, ouvindo o rock que tocava baixo no celular para não incomodar os vizinhos. Mas recordo-me da surpresa de dizeres sobre Deus; era bom saber que em ti havia também uma fé, que talvez o teu jardim fosse regado pela água que em mim já faltava. E se tivesses pedido: creia, eu teria acreditado. Pule, eu teria pulado naquele buraco da cegueira das crenças. E se tivesse ordenado tantas outras coisas, eu teria feito. Porque tinha nos olhos um chicote, e eu era todo escravidão. Captavas com teus olhos famintos as estrelas- e eu captava, com os meus, os teus estrelados. Nesse momento, não dizias nada. Apenas tragavas, e eu tragava-te junto. Ao fundo, os galos. Odiava-os, e já não sei o motivo de um dia já ter gostado do som do amanhecer. Naquela altura, todos os outros, ébrios de sono e de álcool, adormeciam sob a goiabeira. Eu recusava-me a dormir enquanto houvesse você desperto, e aquela realidade valia mais do que qualquer sonho que eu pudesse ter. Os galos cantavam, e cada vez mais galos repetiam o gesto, gorando o sol, o amanhecer. Era tão bom aquele silêncio de gente adormecida- rompido apenas pelo rock-, e a calma das madrugadas onde até a morte parecia descansar. Temia o amanhecer, porque terias que se levantar e partir. E o dia todo seria de uma agitação por dentro, e lá fora uma calmaria de feriado de Corpus Christi. Os tapetes estendidos pela avenida, os fiéis, os curiosos- e todo o tipo de gente à beira das imagens de taças, hóstias, uvas e Cristo. Então eu olhava para o céu, analisava a cor, o negro que aos poucos clareava, e meu medo de que enfim tivesses que ir. Então quebrei o silêncio, dizendo que estava cansado. Tu me perguntaste de que eu me cansava, e respondi que a humanidade tem se repetido, dito a mesa coisa, e os homens, independente da época, tem chorado pelas mesmas coisas. E já não mais falávamos, e pelo meu prazer pedistes o meu peito emprestado para que pudesse recostar a cabeça. E não neguei, nem disse que sim: apenas fitei o céu e deixei que tua cabeça simplesmente desse com meu peito. Há tempos tentava me aproximar, desde aquela noite em que nascera para mim; mas eu ainda não tinha ideia de que a partir daquele dia o traria recém nascido dentro de mim, crescendo, crescendo e crescendo, e muito menos que eu tentava me aproximar. E se afastavas. Eu procurava dizer alguma coisa engraçada, mas somente os outros riam. Encarava-os, mas não a ti: teus olhos intimidavam. Cheguei a crer que jamais me vira, ou me percebera até que um dia de teus lábios vislumbrei o primeiro riso, e dos teus olhos a primeira atenção. Assim foi. E Naquela noite, enquanto amanhecia, enquanto tua cabeça repousava sobre meu peito que nunca descansara, tive a certeza de que o que eu sentia era bom, era ruim: era pecado. ozeias alves, 26 de junho de 2012 Clara Andrade, Gargoule Punkeka, Murilo Batista, Frederico Brison e mais quem quiser ler.
Posted on: Fri, 19 Jul 2013 17:33:59 +0000

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