três mil pessoas na rua. Quando eu passava, o pessoal aplaudia. - TopicsExpress



          

três mil pessoas na rua. Quando eu passava, o pessoal aplaudia. Abriram o bar pra entrar de ré com o Opala. Cadê o Chico? Ele estava dentro de casa o tempo todo. A polícia não veio me procurar aqui. Coloquei ele no porta-malas do carro. Vou chamar o fotógrafo do NP. Fez fotos dele pelado, de frente, de perfil, para entregar à polícia. O homem está inteiro. Cinco ou seis carros dele me escoltaram até a rádio para que não houvesse interceptação no caminho. Se houver, temos que entregar. Na rádio, chegamos por volta das 13h30, tomei o depoimento dele, sete ou oito laudas, levei pro estúdio. Ele queria argumentar que não fez premeditado. É vítima de maus policiais. Polícia induziu. Matou por engano e a casa caiu. Levei pro Garra, foi pra casa de detenção. Arrumei advogado. Vamos alegar insanidade mental. Pediram que eu conseguisse boa colocação na casa de detenção, matador chegar lá, imagina. Antes disso, ele foi ser ouvido num dos processos na 4ª Vara do Júri da Penha. Terminou meu programa e telefonam da Rota. Estamos precisando de você urgente. Ele tem que ser levado pro fórum e tem umas cinco mil pessoas lá. Estamos com medo e gostaria que você nos ajudasse a levar o cara. Corre pra lá. A Rota foi me buscar em casa. Olha só que cena. Pra você ter uma ideia. Ele chegou em carro de preso. Eu fui sentado no capô do carro, com megafone pra abrir caminho pra aquele pessoal todo, o povão todo, queria saber como ele estava, se ele está bem, até entrar no fórum. Eles queriam saber se ele estava bem. Pediram pra ficar lá até o fim da audiência. Eu saía pra falar, fiquei com ele, para dizer que ele estava bem. Fiquei lá até o fim da audiência, fico com ele. O pessoal se condoia com ele. Todos se identificavam com ele. É um pai de família. A partir do momento que passou a correr o boato, tá matando bandido, os bandidos somem. Era o capitão Marco Antonio da Rota, hoje coronel aposentado. Depois de algum tempo foi para o Manicômio Judiciário. Pouco meses depois, numa noite chuvosa, forjaram tentativa de fuga e ele estava numa cela sozinho. Tipo de uma solitária. Os caras arrebentaram aquilo, retorceram e mataram ele com mais de 90 estiletadas, no final de 85/86, não chegou em 87. Esta é a história do Chico Pé de Pato. Uma tremenda história. Virou sinônimo de matador. Ele era um justiceiro, procurou o Estado, polícia e não fizeram nada. O jornalista Antônio Marcos Soldera também entrevistou Chico Pé de Pato nos anos 1980, quando ele trabalhava no jornal Notícias Populares. Nessa época, segundo relatos dados ao repórter, Chico Pé de Pato já havia matado mais de 100 pessoas e ganhava popularidade no bairro onde atuava. O jornalista conta que o justiceiro foi levado ao encontro dele por uma “barca”: 162 veraneio da Chevrolet, carro da polícia militar, com quem Chico atuava em parceria. “Os bandidos tremem em ouvir falar de Chico Pé de Pato e fogem apavorados ao avistar o Opala amarelo de rodas pretas no qual ele comanda seu mutirão contra o crime”, escreveu o autor, em reportagem que só foi parcialmente publicada. O jornalista explica o motivo: A ideia era engordar a lista de justiçamentos de Pé de Pato, para mostrá-lo como um verdadeiro herói da zona leste, ou mais propriamente da região do Itaim Paulista. No entanto, nesse meio tempo, Chico matou, por engano, um policial militar. A casa caiu. Teve que puxar o carro. A polícia, que antes fornecia as indicações de quem seria justiçado, agora queria liquidá-lo” 20. “Em menos de meia-hora, consigo juntar dois caminhões de caçadores de bandidos”, disse Chico à época ao repórter, que também entrevistou moradores. A comerciante Maria Givaneti, que morava no Jardim Elba e teve a padaria assaltada 14 vezes, disse que Pé de Pato ajudou a trazer a tranquilidade de volta ao bairro. “É impressionante a popularidade de Chico Pé de Pato no Jardim Elba”, escreveu o repórter. Os primeiros casos relatados por policiais da época como crimes de justiceiros, semelhantes aos que viriam acontecer nos anos 1980, datam do fim da década de 1970 (MINGARDI, 1991). Segundo esses relatos, o grupo de Geraldo de Oliveira Pereira, vulgo Geraldão, começou em 1977 sua carreira como homicida atuando principalmente em Santo Amaro, Jardim São Luís e Capão Redondo, na zona sul da cidade. Ao Geraldão são imputados seis homicídios, embora se acredite que ele tenha matado o dobro. Em 1983, ele foi assassinado a tiros, facadas e pancadas na cabeça21. Mas aos poucos foram surgindo outros e nos anos 1980 a prática se disseminou por toda a cidade. O caso mais notório a ganhar destaques nos jornais surge no começo dos anos 1980. O soldado da Polícia Militar Florisvaldo de Oliveira, que ficou conhecido como Cabo Bruno e que depois das acusações acabou sendo expulso da corporação, é destaque nos jornais ao conceder entrevistas se assumindo 20 Publicado pelo autor no Blog amsoldera.blogspot, onde ele também publicou as laudas engavetadas pelo jornal Notícias Populares sobre o tema. Acesso em 15/05/2012. 21 Jornal Folha de S. Paulo, 26 de agosto de 1990. Em SP, início foi nos anos 70. 163 como “caçador de bandidos” 22. Cabo Bruno tem origem interiorana, nasceu na cidade de Catanduva e era chefe de família quando ingressou na carreira criminal. Como policial militar, ele foi treinado e formado nos moldes da Doutrina de Segurança Nacional, assim como o sargento Davi e o tenente Pereira. Em entrevista à televisão, dada em 1984, ele disse ter perdido a conta do número de homicídios que praticou, assegurando que era mais de 33. Em novembro de 1984, em entrevista ao repórter Valdir Sanches, depois de cinco meses foragido do presídio Romão Gomes (ele voltaria a fugir novamente em 1987), afirmou que havia matado mais de 50. Agia nos bairros de Pedreira, Campo Limpo, Capão Redondo e Cidade Dutra, na zona sul de São Paulo, e começou a matar em janeiro de 1982 durante as folgas na PM. A origem da carreira de homicídio e as motivações de um dos justiceiros mais famosos de São Paulo se parecem mais com a trajetória de outros policiais matadores, como a do tenente Pereira. Testemunha as dificuldades do trabalho policial, a violência, a impunidade e a ineficiência da corporação e então decide aplicar a Justiça por conta própria. A lentidão e a ineficácia da Justiça, diante de um cotidiano arriscado de prender bandidos que fazia parte da Polícia Militar, transformam o homicídio em um aparente atalho para ele fazer justiça. O reconhecimento pelo trabalho dos justiceiros no período nos bairros onde atuavam é tamanho que sua tarefa chega a se confundir com a da própria polícia, cujos integrantes são chamados para parcerias. Quando trabalhava no Capão Redondo, o sargento Davi conta como foi intimidado, em 1987, por Adalton Pereira Novaes, justiceiro que atuava em Campo Limpo, Capão Redondo e Cidade Dutra. Para os policiais militares que atuavam em bairros violentos, com pouco efetivo de homens, o convívio com justiceiros precisava ser administrado, já que ambos jogavam no mesmo time contra os “bandidos locais” por meio dos homicídios. Davi se negou a participar do grupo de justiceiros. Mas depois, foi preciso contornar a situação. Apesar da negativa, Davi tentou manter um convívio amistoso com Adalton. O conflito entre os dois se iniciou somente depois que Davi sentiu-se ameaçado, ao tentar cumprimentá-lo em um bar, sem ser correspondido. 22 Entrevista dada ao repórter Valdir Sanches em 20 de novembro de 1984 para a Revista Afinal. 164 Eu tinha acabado de ser promovido a segundo sargento em 1987. Fiz uma grande operação na favela, 30 polícias, matamos três bandidos que estavam aterrorizando a favela. A população saiu e bateu palma. Chegamos lá no PS, no Piratininga, os caras baleados. Graças a Deus, eu fui forte. E nós tínhamos sofrido também. Ocorrência de horas. O Gil Gomes era chegadão aqui da área, Afanásio. Todo dia tinha história no Afanásio. Nisso, um cara me chamou de lado, Adalton, um dos cabeças (dos justiceiros na zona sul). Ele falou: aí sargento, a gente tem que dar um jeito de se unir, os vagabundos estão dominando a área. Vamos se unir pra combater melhor esses caras. Eu falei: „eu sou polícia. Estou de serviço. Quando estou de folga, tenho minha vida, tenho minha família. Eu não saio em hora de folga. Na polícia, eu tô aqui‟. Esse cara virou a cara comigo. Passou um tempo, eu estava acompanhando uma amiga na mudança. Tinha uns ladrões ameaçando ela, e eu fui dar uma força. À paisana. Parei meu carro e falei: „vai fazer a mudança, estou aqui‟. Se os caras aparecerem, dou um jeito. Eu era meio louco. Tinha um bar. Estou parado ali e vejo o Adalton. Vou lá, pensei, o cara é conhecido meu, vou trocar uma ideia. Entrei no bar e o cumprimentei. Ele estava jogando snooker com outros oito caras. Olhei em volta, estava todo mundo armado. E eu sozinho. Fui devagar, encostei na parede. Fiquei olhando o jogo, dei um passo pra trás. Neste dia, eu estava de folga e estava tendo uma operação. Liguei 190, liguei pro Copom, vieram os caras, enquadraram e não acharam nada. Daí, eu fui lá. Falei: „olha atrás do balcão, tá ali, ta lá‟. Pegaram seis armas. Levou todo mundo pro distrito. E o Adalto foi junto. Aí eu tô trabalhando na área. Os caras vêm pra mim e falaram. „O Adalton quer te pegar. Falou que você é cagueta‟. Eu falei: „Cagueta?‟ Tá bom. E olha como é o destino. Sei onde ele mora. Vi um bêbado com bicicleta, todo ralado, a roda estava em oito, tinha tomado um capote, eu parei e ele falou, „Roubaram meu revólver e foi o Adalton‟. Agora eu cato o Adalton. Ele está na casa dele. Eu gostava de chegar a pé. Fui lá, pulei o muro e encontrei ele sozinho no portão. Falei: „você anda falando que eu sou cagueta. Eu não sou cagueta, sou polícia. Polícia, quando está em desvantagem numérica, chama reforço. Eu não sou herói, a gente chama reforço. E fui lá, te cumprimentei você não me deu nem atenção. Então você tava armado, tem que te catar. Agora vou te prender porque você roubou o revólver do cara‟. Falou pra mulher. „Ô mulher, é o sargento Davi que está aqui‟, pra ela saber e eu não poder matar. Ela trouxe o revólver do bêbado. Só que ele tinha uma cobertura ferrada no DP. Não tinha jeito. Eu dei um susto pra... Eu falei: „eu não tenho nada com você. Você tem seus problemas, eu tenho os meus, não quero saber da sua vida‟. Foi lá no DP, não foi flagrante, não foi nada, no mesmo dia ele estava em casa. Você era polícia, levava o cara, vai reclamar pra quem. Não adiantava falar pro comandante. Você tem que saber viver. E foi indo. Os pés de pato aterrorizando. Aterrorizando. 165 No ano seguinte, Adalton seria preso e acusado de envolvimento em uma chacina com sete vítimas na Padaria Nova Paulista, no Jardim Santo Eduardo, Embu, na Região Metropolitana de São Paulo. Era janeiro de 1988 e um grupo de nove pessoas fazia uma batucada. Seis matadores desceram do carro, dizendo que eram do Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic). Junto com Adalton estavam mais três justiceiros da zona sul: Eronides de Oliveira Moreira, o Índio, paulista de Lutécia, acusado da autoria de dez homicídios no Parque Arariba; Geraldo Felipe de Araújo, Geraldinho, cearense de Viçosa, acusado de três homicídios; Lerival Correia Freire, piauiense de Nazaré, morador do Campo Limpo, acusado de outros dois homicídios. Na casa de Adalton foi encontrada uma foto em que ele bebia em um bar ao lado de outros justiceiros. Todos exibiam seus revólveres e pistolas na cintura. Um suplente de vereador pelo Partido dos Trabalhadores, irmão de um comerciante da cidade, foi acusado de participar da chacina ao ter o carro identificado na cena do crime23. Professor no Jardim Santo Eduardo, Adilson Santos Martins, explicou em entrevista o papel que era exercido pelos justiceiros na cidade: Quem era o justiceiro? É algo semelhante ao transporte alternativo. Empresa de ônibus de manhã, com 10 ônibus, leva as pessoas para a cidade, mas na volta manda só seis. Quem aparece? Os perueiros. Para quem a pessoa pode reclamar? O transporte coletivo nasce do descaso das autoridades do transporte com a população da periferia. O justiceiro nasce do descaso das autoridades policiais com a população da periferia. Existem pessoas que não respeitam ninguém, que quer ser o dono do pedaço, sai com revólver e quer mandar em todo mundo. A comunidade denunciava essa pessoa e o marginal algumas horas depois estavam livres. Dão risada na cara da comunidade e ainda voltam pior do que antes. Os justiceiros jogaram um balde de água fria na ansiedade dessa gente. Quando os justiceiros chegavam, os bandidos iam embora. Na escola que eu lecionava, estudava a filha de um justiceiro e quando ele ia buscar a menina todos os bandidos sumiam de perto. O que eu fazia? Eu chamava ele para entrar, para tomar cafezinho na escola24. 23 Jornal da Tarde, 1º de fevereiro de 1988. Fim da batucada: sete mortos. 2 de fevereiro. A Chacina. 24 Entrevista gravada feita em 2002. 166 Cabo Bruno, um dos justiceiros mais conhecidos do período, apesar de ser policial militar, agia nos momentos de folga e acabou sendo expulso da corporação. Ele contou sobre o começo da carreira e suas motivações ao repórter Valdir Sanches. Ao contrário do discurso da maioria dos justiceiros que surgiriam em São Paulo ao longo dos anos 1980, Cabo Bruno nega que ele e familiares tenham sido vítimas de violência. Na entrevista, posou com armas em punho e um pente de munições cruzado sobre o peito. Mostrou o rosto, apesar de estar havia cinco meses foragido do Presídio Romão Gomes da Polícia Militar. Estava em uma ampla fazenda onde passaria a trabalhar como segurança privado. Sanches conta que a entrevista ocorreu por iniciativa do justiceiro25. Um intermediário ligou na redação da revista Afinal sugerindo o encontro ao editor-chefe, Fernando Mitre, que aceitou a oferta. Cabo Bruno falou sobre o começo da carreira a Sanches: A minha ideia de começar a agir começou logo que eu mudei para o Jardim Selma, no bairro da Pedreira (zona sul de São Paulo). Como policial eu já tinha visto muitos atos de violência. Prendido muitas pessoas. Nunca aconteceu nada com a minha família e nem comigo mesmo. Mas eu não esperei acontecer para que eu tomasse providência. A meu modo. Porque se for fazer na polícia não tem condições. Você prende o elemento, no dia seguinte ele está solto, na rua, te ameaçando. Então, eu já estava a fim de começar uma limpeza mesmo, e aí iniciei um levantamento no bairro, dos elementos que tinham passagem pela polícia etc. (...) Na realidade, eu também sei que o que foi feito foi errado. Foi um negócio que eu não devia fazer. Devia o quê? Devia pensar que tem justiça para cuidar disso aí. Tem lei. Eu não devia me envolver nisso. Mas cadê a lei? Cadê a Justiça? Então, quer dizer, eu fiz do meu modo. (...) O que eu acho que eu sou? Um justiceiro, um protetor... Eu me considero como se fosse um protetor da sociedade, pelo que eu fiz. Na época eu achava isso, que estava protegendo a população. Então eu me sentia bem, como me sinto hoje, em ser o que sou. Não me envergonho, mesmo que uma pessoa seja contra mim. Eu dou todo o direito de uma pessoa ser contra mim. Já estive com várias pessoas que me disseram que eu agi errado. Certo. Até o momento em que não acontecer nada com sua família. A mesma coisa com esses caras dos direitos humanos. Enquanto não acontecer nada com a família deles, estão aí, pau na polícia, pau na polícia... Se existissem pelo menos uns sete ou oito iguais a mim, acho que melhorava 100%. Estariam eliminando os elementos que incentivam 25 Durante conversa sobre os bastidores da reportagem. 167 os outros, entende? Porque cortando o mal pela raiz... Você fala, pô, mas vai matar garoto de 13, 14 anos... Mas é aí que tem que morrer. Porque os piores são eles [conta a história de um menino que matou uma mulher grávida]. Putz, tenho tanta dó que se eu pudesse estrangular um por um... Eu tenho uma revolta tão grande que eu não consigo sentir dó de ninguém. (...) Eu tenho muita bronca do pessoal dos direitos humanos. Na realidade, esse Dom Paulo Evaristo é o responsável por tudo o que os direitos humanos fazem. Ele defende muito banditismo. Os bandidos podem fazer o que bem entende. Ele não critica não. Em todos os debates que já vi na TV ele é sempre diferente dos outros. Também me dá raiva os advogados que põem contra mim, três, quatro para me acusar. Por que eles põem tantos advogados assim tentando me incriminar, se eu só matei marginais? Com poucas exceções, os justiceiros são migrantes rurais, apegados aos valores tradicionais das pequenas cidades onde cresceram. Acreditam nas oportunidades e nas perspectivas de futuro oferecidas pela cidade, aproveitadas por aqueles que estão dispostos a trabalhar. Normalmente, descrevem o começo da trajetória de violência como um percurso que se inicia em defesa da honra pessoal ou familiar. Apesar do contexto favorável aos homicídios e do aval aparente das instituições de segurança, o ingresso na carreira costuma estar relacionado a uma agressão marcante sofrida por eles ou pela família. Diante desse evento inesperado, as alternativas de justiça são escassas no lugar onde vivem: como não se pode contar com a Polícia, resta se calar ou responder aos agressores por meio da violência. Em cada um dos casos, fica difícil apontar o que determinou cada uma das escolhas homicidas. Inegável que o contexto moral favorável aos homicídios é determinante. Há, no entanto, aqueles que praticam os homicídios e aqueles que somente apoiam ou dão suporte a esta solução. A diferença, além da própria personalidade e da moral individual, está vinculada à trajetória de cada um. Pelos relatos, aqueles que sofrem agressão estão mais sujeitos a ingressar nessa carreira de violência. Fato é que depois do primeiro homicídio, as escolhas e o cotidiano do assassino se transformam. Como os justiceiros não têm a farda e os colegas da corporação para lhes proteger, eles precisam fazer alianças para continuar na carreira de matador e evitar retaliações dos inimigos e criminosos que agem no bairro. O próprio risco de vida iminente o levava a matar pessoas suspeitas, situação que o induz também a escolhas homicidas cada vez mais recorrentes e gratuitas. O critério do justiceiro torna-se pessoal 168 com o passar do tempo, voltado à própria salvação e não mais exclusivamente aos supostos interesses da comunidade. A aliança com outros criminosos que o ajudam a garantir o sustento e a se defender dos inimigos acabava sendo o caminho natural. São trajetórias vinculadas aos territórios onde eles agem nas periferias da metrópole. Os justiceiros começam induzidos pelo contexto moral favorável à violência, provocados pela agressão de terceiros, normalmente acusados de serem bandidos locais. Praticam um homicídio em resposta, mas seguem a carreira em situação vulnerável, chantageados por policiais, ameaçados por vizinhos. Precisam matar rivais potenciais e reais para continuar agindo nos bairros onde atuam, até serem presos ou assassinados. Se a zona sul da Região Metropolitana concentra alguns dos casos mais famosos de justiceiros, esse tipo de ação se repete em praticamente todas as periferias de São Paulo. Na zona norte da cidade, entre 1983 e 1987, nas favelas da Funerária e Marconi, Rivadávia Serafim da Silva, o Rivinha, foi um justiceiro suspeito de ter cometido com seu grupo cerca de 200 homicídios. Ele era cearense da cidade de Pena Forte. Tinha menos de 1,60 metros, pesava perto de 45 quilos e dizia que começou a matar depois de ver a mãe, mulher e filha violentadas (CARBONE, 2008). O pernambucano José Magno da Silva, conhecido como Zé Magrela, que segundo os jornais amarrava infratores em postes e troncos de árvores para ajudar a polícia na zona norte, também fazia parte do grupo de Rivinha26. Chico Pé de Pato era de Campo Alegre de Lourdes, sertão da Bahia, e agia na zona leste. Na zona sul, Jonas Félix da Silva atuou como justiceiro em bairros como Jardim Ângela, Jardim das Rosas, Jardim Nakamura e na cidade de Embu-Guaçu. Era de Limoeiro, Pernambuco, ex-pedreiro, vigia, vendedor de frutas e foi acusado de cometer 34 homicídios. Diz que começou em 1985 depois que teve a casa no Rio Pequeno roubada e a mulher, Letícia, estuprada27. Os pernambucanos Gilvam Brás da Silva e Francisco Alves de Souza atuavam em Guarulhos, na zona norte da Região 26 Jornal O Estado de S. Paulo do dia 23 de junho de 1987: Rivinha, o justiceiro está preso no Nordeste 27 Entrevista dada ao jornalista Kiko Nogueira na Revista Veja de 7 de abril de 1996. 169 Metropolitana28. Também era pernambucano Ivanildo Gomes de Freitas, o Zoreia, da cidade de Prazeres. Em 1988, tinha 33 anos e era acusado de 60 homicídios em Osasco, na zona oeste da Região Metropolitana. Em 1984, na primeira vez que foi preso, vizinhos foram protestar em frente ao Fórum Criminal João Mendes, no centro de São Paulo. Em 1987, quando estava na Casa de Detenção, Zoreia escreveu a Jazadji pedindo a construção de um presídio só para justiceiros29. O trabalho, assim, aparece como uma forma de enfrentamento e afastamento da violência, como regra de organização social capaz de coibir os impulsos para as transgressões com a promessa da satisfação posterior. As festas, os jogos, o crime e a violência estimulam impulsos de satisfação imediata (BATAILLE, 1988: 28 apud CARBONE, 2008). Rivadávia Serafim da Silva, o Rivinha, deu entrevista em 1999, quando estava preso no Centro de Observações Criminológicas, em que explica a motivação e os valores por trás da decisão de matar, que estão diretamente vinculados à realidade e ao contexto em que vivia. Esse contexto violento, segundo Rivinha, e a ousadia dos ladrões direcionaram as escolhas que tomou em defesa da própria integridade física e dos valores dos trabalhadores que com ele conviviam. ... pessoal traficante bandido, eles chegava na sua casa e diziam assim quero dormir com a tua mulher hoje, cê tinha que pegar a mulher e levá pra eles dormir, pegava aquelas criança e estuprava vendia drogas, barbarizavam, hora do silêncio, eu ligava uma radiola assim, quando dava umas sete e meia, aquela radiola era ligada e quando você ligava a sua radiola eles quebrava tomava, bagunçava. Cê comprava um barraquinho, eles mandavam quebrá, então aquele grupo de bandidos ali... barbarizavam, sabe o que é barbarizá? Chegava aqueles cabra ali e cê tinha que pagá aquela taxa de proteção, era um negócio forçado mesmo...eu vivia bem, era trabalhador... Eles não respeita pai de família certo, eles não respeita ninguém, eles só ficam de olho em você se você entregar morre, é por isso que aí se cria o justiceiro, se cria uma pessoa como eu, cria a revolta, eu fiquei revoltado mesmo, devia ter ido embora.... (CARBONE, 2008: 178) 28 Jornal O Estado de S. Paulo do dia 13 de agosto de 1987. Justiceiros confessam 5 crimes em Guarulhos. 29 Folha de S. Paulo do dia 7 de fevereiro de 1988. Crime, dinheiro e poder formam a vida dos justiceiros em São Paulo. 170 O justiceiro seria aquele pai de família..., é um pai de família assim como eu que trabalhou, que chega na casa dele, barbarizaram a casa dele estupraram. Então ele se revolta daquele dia pra frente, ele procura a polícia a polícia não dá boi, então ele vira justiceiro... e matador de aluguel, é aquele eu vi muito no Norte, no Nordeste, conta essas histórias do fazendeiro que chega se tem alguma discórdia, o cara te dá cem milhão pro cê tirar a vida de uma pessoa, aí vem ele vai lá e mata, então ele vive disso aí. Ele mata quando dá o dinheiro sem ter raiva, nada.. Pistoleiro é a mesma coisa, é os cara que atira bem, que atira pá e não erra o tiro, então o que acontece e o matador é isso aí, mata pra ganhar dinheiro, cê vê ele não sai matando ladrão nem pai de família, tanto faz matá pai de família, como a senhora mãe de família, pra ele tanto faz, se dé dinheiro ele vai lá e mata, eu graças a Deus nunca fiz isso na minha vida, minha vida foi brigá com traficante, inclusive se eu quisesse eu matava, só que muita gente eu entreguei pra polícia.... (CARBONE, 2008: 176) ... não! isso aí é uma coisa que eu detesto, nunca tirei a vida de uma pessoa pra ganhá dinheiro, se o cara me desse cem milhão eu acho que é a coisa mais errada do mundo, você tira a vida de uma pessoa pra ganhá dinheiro, nunca matei ninguém, pra começa nunca matei uma criança de menor... (CARBONE, 2008: 183) Existem regularidades empíricas que associam a identidade do justiceiro dos anos 1980 em São Paulo à sua origem cultural – normalmente associada à zona rural brasileira – e à sua trajetória individual de migrante. Chega normalmente esperançoso em vencer em São Paulo pelo trabalho, mas acaba seguindo por outros caminhos, depois de eventos inesperados que o induz a escolhas que o levam a tornar-se justiceiro – normalmente depois de ser vítima de violência. Para a população, eles representavam uma alternativa eficiente em um contexto de violência e de instabilidade, onde os valores tradicionais são ameaçados cotidianamente. Os justiceiros, nesse caso, por serem assassinos dos “vilões”, tornam-se heróis em vez de párias. João dos Santos, conhecido como João Balaio, paraibano, nascido em Serra Branca, foi um justiceiro famoso nos anos 1980 e atuava no Parque Santo Antônio, na zona sul. Em outubro de 1989, quando ele tinha 28 anos, cerca de 100 moradores do bairro invadiram o Hospital e Maternidade Piratininga para resgatá-lo. A polícia prendeu 19 invasores, mas quatro homens armados arrebentaram a algema que prendia João Balaio à cama do hospital e o resgataram. João Balaio dizia que começou a matar depois do homicídio de seu irmão, Dimas 171 dos Santos, durante um assalto em 198430. Em janeiro de 1987, durante rebelião na Cadeia de Franco da Rocha, Pé de Pato foi assassinado com mais de 70 facadas pelos demais detentos. Nesse ano, o jornalista Afanásio Jazadji se preparava para iniciar o mandado de deputado estadual, cargo para o qual havia sido eleito em 1986 com 558.138 votos – recorde na história de São Paulo. A defesa dos justiceiros e do combate violento e sem tréguas ao crime havia ajudado a garantir a popularidade do deputado. Em 1987, Jazadji havia sido chamado para participar de um programa de entrevista ao vivo com o então secretário de segurança pública do governo Franco Montoro, Eduardo Muylaert. Jazadji justificou a ausência por meio de uma carta lida no programa, que explicava: Por volta das 14 horas de hoje fui procurado na Rádio Capital, por cerca de três mil pessoas, homens, mulheres, crianças e idosos que haviam seguido a pé das favelas Marconi e Funerária, no Parque Novo Mundo, com faixas e cartazes até a avenida 09 de Julho, provocando transtornos no trânsito e a intervenção do DSV [Departamento de Operação do Sistema Viário], rádio-patrulha, Rota e tático móvel que garantiram sua caminhada pacífica e ordeira. As referidas pessoas estavam preocupadas com a possível eliminação, dentro da Casa de Detenção, do preso apelidado José Magrela, apontado como mata-bandido daquelas duas favelas. Diante do ocorrido na última semana no presídio Franco da Rocha, com Chico Pé de Pato, temem elas que Magrela tenha o mesmo fim. A população dessas favelas pretendia, portanto, garantias de vida ao favelado conhecido por Rivinha, também acusado de matar bandidos e que está foragido desde 1985 da carceragem do 19º Distrito Policial da Vila Maria. (...) Numa edição extraordinária, entrevistei algumas daquelas pessoas por volta das 2h30min desta tarde, colocando no ar, também por telefone, sua Excelência, o juiz auxiliar da corregedoria de polícia judiciária, doutor Wando Henrique Cardim Filho, dele obtendo compromisso de amplas e reais garantias a Rivinha, caso ele se rendesse. Fernandes (1992) entrevistou três justiceiros que atuaram na cidade e na RMSP nos anos 1980, ex-integrantes da Polícia Militar, assim como seus familiares. Para a autora, os justiceiros seriam “homens decididos, que acreditam agir sozinhos em nome da classe trabalhadora e não com elas” (FERNANDES, 1992: 51). Segundo Fernandes, o custo desse “imaginário 30 Jornal O Estado de S. Paulo do dia 7 de setembro de 1990. 172 heroicizado pela boa causa é o da luta que já não é coletiva, mas exemplar, que não visa à organização e resistência das classes trabalhadoras, mas que, ao contrário, esgota-se na violência terrorista em troca da ordem e segurança dos bons chefes de família”. Os justiceiros matavam como forma de dar exemplo e buscavam desse jeito garantir a ordem na sociedade em que viviam (FERNANDES, 1992: 51). Além das entrevistas em rádios e jornais, assim como o esquadrão da morte, era comum que os justiceiros usassem símbolos ou mensagens nos crimes que praticavam, como cravo vermelho e Bombril, lista de futuras vítimas colocadas em comércios e postes, que expressavam desejo de reconhecimento público (ADORNO; CARDIA, 1997). De qualquer forma, os justiceiros só podem ser compreendidos no decorrer dessa análise longitudinal, em que sucede o esquadrão da morte e atuam em parceria com os policiais matadores. Eles são o resultado dessa trajetória que em São Paulo ganha suas especificidades locais – os justiceiros não chegam a se tornar personagens do universo criminal fluminense, por exemplo. Ao mesmo tempo, os justiceiros só podem ser compreendidos como personagens que antecedem a ampliação do universo do crime e das oportunidades de negócios ilegais na RMSP. Com a expansão das oportunidades e das redes criminais, o exterminador de bandidos, morador das comunidades periféricas deixa de fazer qualquer sentido, já que o crime passa a fazer parte do cotidiano do período. Ser bandido torna-se trajetória tolerada e respeitada, desde que o caminho seja trilhado respeitando os procederes
Posted on: Sat, 22 Jun 2013 22:31:27 +0000

Trending Topics



Recently Viewed Topics




© 2015