CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL 51ª Assembleia Geral - TopicsExpress



          

CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL 51ª Assembleia Geral da CNBB Aparecida-SP, 10 a 19 de abril de 2013 A Igreja e a questão agrária no século XXI 1ª Parte: EU VI A OPRESSÃO DO MEU POVO(Êx 3,7) 1. Nossa obrigação pastoral é testemunhar, com nossa vida e nossas escolhas, a prática de Jesus bom pastor. É dele que nós aprendemos a verdadeira metodologia que deve ser seguida. O ponto de partida é claro: “Eu sou o bom pastor. Conheço minhas ovelhas e elas me conhecem” (Jo 10,14). É a dinâmica gravada nas mais antigas memórias do povo de Israel: “do meio da escravidão seu grito de socorro subiu até Deus. Deus ouviu seus lamentos” (Êx 2,23s). É por isso que, nesta primeira parte, no intuito de vivenciar uma pastoral coerente com as propostas de Jesus, buscamos conhecer a voz, o grito, o lamento, muitas vezes abafado, que sai do chão da opressão em que vivem as populações e as comunidades do campo brasileiro. O clamor dos povos indígenas 2. Em 1974, com o apoio do recém-criado CIMI, os povos indígenas se reuniram na primeira assembleia de líderes indígenas. De lá para cá, os povos indígenas cresceram em articulação, autonomia e suas lutas se multiplicaram. Em 1980 nasceu a União das Nações Indígenas e o movimento indígena se consolidou ao redor de três bandeiras: a luta pelos territórios, a participação nas políticas indigenistas e a urgência de uma sempre maior articulação entre as nações indígenas. Em 1988, a Constituição Federal reconhecia os direitos inegociáveis dos povos indígenas e, no artigo 67 da ADCT, estabelecia: “A União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos, a partir da promulgação da Constituição”. Esta determinação constitucional está muito longe de ser cumprida. Os dados do CIMI nos dizem que só foram regularizadas 405 das 1.044 áreas indígenas existentes . A soma de todas as áreas indígenas regularizadas é menor do que a soma dos pouco mais de 15 mil latifúndios com área superior a 2.500 hectares . E, mesmo assim, é muito comum se ouvir, sobretudo de políticos da bancada ruralista e de outras autoridades, que há muita terra para pouco índio. 3. O que nos preocupa, mais do que o atraso no processo de regularização dos territórios indígenas, é a pressão e a invasão que muitas dessas áreas regularizadas sofrem para retirada de madeira, exploração de minérios, construção de barragens para hidrelétricas e para outro sem número de atividades, às vezes, ilegais. O CIMI informa que, em 2011, foram registrados 42 casos de invasões e exploração ilegal de recursos naturais. Em 2010, haviam ocorrido outros 33 casos. 4. Esse esbulho dos territórios indígenas lhes limitou o espaço vital, necessário para a reprodução da vida da família e do grupo e, provocou a extrema violência que sofrem. O CIMI constata uma média de 55 assassinatos por ano entre 2003 e 2011, num total de 503 mortos nesse período. Em 2011, foram 51 vítimas. E outro dado alarmante é o alto número de suicídios, sobretudo entre os Guarani Kaiowá. Entre 2000 e 2011, foram registrados 555 suicídios. Isso, segundo vários pesquisadores, se explica pela falta de perspectivas de futuro. Os Guarani Kaiowá do Mato Grosso do Sul são exemplo vivo desta brutal realidade: boa parte deles vive em acampamentos às beiras das estradas e são tratados como intrusos em sua própria terra. 5. No congresso nacional tramitam, também, vários projetos de lei que propõem a redução de direitos tão duramente conquistados. A PEC 215, por exemplo, quer retirar a competência do Executivo na definição dos territórios indígenas passando-a para o Senado. Se o Executivo é tão lento na definição e regularização destes territórios, o que será quando isso passar para o Congresso, onde uma grande bancada se opõe ferrenhamente contra os interesses dos grupos minoritários em nosso país? 6. O próprio Executivo, recentemente, baixou uma portaria em que determina que para a identificação e regularização de territórios indígenas deve-se ouvir primeiro o Ministério de Minas e Energia. Outra portaria da Advocacia Geral da União quer estender a todas as áreas indígenas as condicionantes que um ministro do Supremo Tribunal Federal estabeleceu em relação à Terra Indígena Raposa Serra do Sol. São os interesses econômicos que se sobrepõem aos direitos imemoriais das comunidades indígenas sobre seus territórios. Ontem como hoje os interesses do “desenvolvimento econômico” falam mais alto que os povos que lá se encontram com suas culturas. A estrutura da FUNAI, também, foi modificada e seu papel foi reduzido e enfraquecido. O clamor dos quilombolas 7. Em 1980 os documentos da CNBB ainda não explicitavam, apesar de seu grito persistente ao longo de nossa história, a opressão das comunidades quilombolas presentes no nosso país. Os negros sofreram toda sorte de humilhações e violência durante a escravidão e a eles se negou o direito à terra, ao se anunciar sua “liberdade”. Na busca pela liberdade, os negros construíram espaços de vida livre que se chamaram de Quilombos. Em 1978 teve sua origem o Movimento Negro Unificado contra a discriminação racial (MNU). As lutas e a resistência das comunidades de afrodescendentes fizeram com que a Constituição de 1988 reconhecesse o direito dos negros aos territórios que ocupavam. Assim diz o Art. 68 das ADCT: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”. Em 1989, finalmente, a lei Caó, de autoria do deputado Carlos Alberto de Oliveira definiu o racismo como crime. 8. Até 2011, depois de mais de 20 anos, somente 111 das 2.847 comunidades quilombolas existentes no Brasil tinham sido tituladas, beneficiando 11.588 famílias, com 963.058 hectares, menos de 10% da área ocupada pelos latifúndios com mais de 2.500 hectares. Além de não terem seus territórios reconhecidos, os quilombolas sofrem toda sorte de pressão e violência para dar espaço a grileiros, fazendeiros, empresários e a projetos governamentais que querem se apoderar das terras que ainda hoje ocupam. Em 2010, a CPT registrou 71 comunidades em conflito pelo seu território, em oito estados, envolvendo 5.926 famílias. Em 2011, esse número cresceu para 100 comunidades em conflito, em 11 estados, que atingiram 7.692 famílias. As principais formas de agressão e violência são: a expulsão de suas terras com destruição de suas casas e roças, os despejos judiciais, as ameaças de morte e os assassinatos. Entre as 347 pessoas ameaçadas de morte, registradas pela CPT, em 2011, 77 são quilombolas. Em 2012, mais três quilombolas sofreram tentativa de assassinato e outros três foram assassinados. 9. Preocupam-nos os ataques violentos e sistemáticos que as comunidades quilombolas vêm sofrendo contra seus direitos duramente conquistados. Proliferam no âmbito do Congresso Nacional projetos de Lei que buscam restringir os direitos que lhes garantem o acesso à terra. Alguns partidos acionaram o Supremo Tribunal Federal para que declare inconstitucional o Decreto 4887/2003 que regulamentou o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos. Outro instrumento utilizado para penalizar as comunidades quilombolas e abrir caminho para a invasão de suas terras é a cobrança, em “terras de preto”, do Imposto Territorial Rural com valores insuportáveis e que, em alguns casos, chegaram a milhões de reais. 10. Povos indígenas, comunidades quilombolas e comunidades tradicionais de ribeirinhos, pescadores, seringueiros, posseiros e outras muitas, ao resistirem nas terras que ocupam, ao lutar para recuperar os territórios que lhes pertenceram e ao se recusarem a inserir no mercado os bens naturais de que desfrutam e necessitam, são considerados fatores de atraso e empecilho ao crescimento e ao progresso. Empecilhos que devem ser removidos. São vítimas da expansão do capital e do dinheiro na agricultura, nos projetos da chamada “expansão primário-exportadora”. O clamor dos sem-terra 11. Já fazem parte da paisagem nacional, em quase todos os estados brasileiros, os inúmeros acampamentos formados de barracas cobertas de lona preta, às beiras das estradas. Famílias inteiras, homens, mulheres, jovens, crianças, idosos, em minúsculos espaços, sujeitos às intempéries do tempo, esperando o tão sonhado pedaço de chão, para de ele tirar seu sustento. Os sem-terra sempre foram uma parte muito significativa da população rural do Brasil. Esta realidade gritante levou 80 trabalhadores rurais, que ajudavam a organizar ocupações de terra em 12 estados a se reunirem, em 1984, na cidade de Cascavél. Eram os primeiros passos do que viria a ser o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST. O movimento ganhou espaço no cenário nacional pelas diversas formas de ação que realizou: ocupação de terras, acampamentos, marchas e manifestações. Hoje, ao MST somam-se dezenas de movimentos, todos lutando para que a Reforma Agrária se torne realidade. O próprio INCRA reconhece a existência de, em torno a, 180 mil famílias acampadas. 12. A resposta a esta demanda tem sido mínima. No ano de 2011, segundo os dados precaríssimos fornecidos pelo INCRA, somente 22.021 famílias foram assentadas, o menor número desde 1995. No mesmo ano, a CPT informou que foram expulsas da terra 2.137 famílias, 7.033 foram despejadas por ordem judicial e 12.368 sofrem ameaças de despejo. 13. É gravíssimo constatar que os trabalhadores sem terra, por causa de sua luta, são discriminados e considerados cidadãos de segunda categoria. No Rio Grande do Sul, por exemplo, o processo de escolarização das crianças nos próprios acampamentos foi proibido, por ser considerado nocivo às crianças que são, por isso, obrigadas a percorrer dezenas de quilômetros para chegar ao local da escola mais próxima. 14. Quando os sem-terra ocupam áreas, muitas delas notoriamente griladas, reivindicando a realização da reforma agrária, sua ação é criminalizada pelos poderes públicos e pela grande mídia. São tratados como criminosos e bandidos. Muitos juízes, porém, não levam em conta o crime de grilagem de terras públicas, conforme o art. 20 da Lei 4.947/66, mas, incoerentemente, alguns deles aplicam este mesmo artigo para criminalizar a luta de quem busca resgatar as terras que são do estado, para que voltem ao patrimônio público. A Constituição Federal estabelece que ”A destinação de terras públicas e devolutas será compatibilizada com a política agrícola e com o plano nacional de reforma agrária” (art. 188). 15. Como diz o eminente jurista Jacques Alfonsin há “uma cultura jurídica interpretativa dos fatos e das leis, que pré-julga, por uma síndrome medrosa e preconceituosa, todo o povo pobre ativo - como são as/os sem-terra que defendem seus direitos - fechado numa clausura de suspeita antecipada de que ele é, por sua própria condição social, perigoso e tendente a praticar crimes.” O clamor dos assalariados e escravizados do campo 16. Outro clamor que sobe aos céus é o dos homens e mulheres assalariados no campo e que, muitas vezes, no seu trabalho, são submetidos a condições degradantes, análogas ao trabalho escravo. 17. Encontram-se assalariados nas mais diversas atividades rurais e no cultivo dos mais diversos produtos. A situação dos cortadores de cana é emblemática, seja pelo grande número de pessoas envolvidas, seja pelas difíceis condições de trabalho a que são obrigados a suportar. Diante da maior atenção por parte dos fiscais do trabalho, consequência das muitas denúncias apresentadas e da degradação do meio ambiente provocada pela queimada da palha, as empresas estão optando pela mecanização da colheita da cana. Esta mecanização está trazendo consigo duas consequências perversas para os trabalhadores: tem diminuído consideravelmente o número de trabalhadores contratados para este trabalho e têm piorado as condições de trabalho dos que permanecem empregados, pois os cortadores necessitam atingir uma cota de produtividade cada vez maior para garantir seu emprego. Os que não atingem a cota de produção estipulada ficam desempregados. Foram registrados casos em que um único cortador colheu até 12 toneladas diárias de cana. As jornadas exaustivas tornaram esta atividade a campeã dos “auxílios-doença” registrados pelo INSS . Não são poucos os que morreram por exaustão, devido ao esforço excessivo. As empresas utilizam a mecanização como chantagem para evitar que os trabalhadores reivindiquem melhorias de salário e de condições de trabalho. As usinas do Mato Grosso do Sul, diante das denúncias de irregularidades na contratação, alojamento, alimentação, segurança e transporte de trabalhadores migrantes, que vinham do Nordeste, optaram pelo uso do trabalho indígena local. 18. Os cortadores não têm o controle de sua produção, tanto na medição do que cortaram, quanto na pesagem da cana, o que facilita a exploração do trabalho não pago pelas usinas e pelos chamados “gatos”, como são chamados os intermediários no aliciamento dos trabalhadores. 19. O que acontece com os cortadores de cana, de uma forma ou outra, também, acontece com os que trabalham na colheita do café, do tomate, do mate, no plantio de eucalipto, na produção de carvão vegetal e em outras atividades, como roçagem de pastos, levantamento de cercas etc. Além disso, muitos ficam expostos à pulverização de agrotóxicos que afeta sua saúde. 20. Muitos destes trabalhadores são levados de lugares distantes e colocados em áreas de trabalho de difícil acesso. São enganados com promessas falsas, ludibriados nos contratos e acabam superexplorados no trabalho e obrigados a viver em condições degradantes, tratados pior que animais. Quando adoecem não tem o menor atendimento. Sua dignidade é espezinhada. São alojados em espaços sem qualquer cuidado e segurança. Muitas vezes têm que disputar o espaço com animais ou ficam no mesmo lugar onde se guardam os venenos aplicados nos pastos e nas lavouras. Trata-se de trabalho análogo ao trabalho escravo. Muitos, na hora do acerto não recebem o que lhes é devido e alguns ainda sofrem ameaças, quando não são mortos. 21. Apesar das constantes denúncias, (a Igreja o vem fazendo desde a década de 1970) e das ações públicas que o combatem, este tipo de trabalho continua presente em terras brasileiras. Os trabalhadores são vistos e tratados como peças de uma máquina e sua condição de seres humanos é espezinhada e vilipendiada. 22. Encontram-se situações de escravidão em quase todos os estados do país. O trabalho escravo não se restringe ao meio rural. Foi flagrado em indústrias do vestuário e também na construção civil explorando, sobretudo imigrantes de países vizinhos. Mas é no campo que ele tem sido encontrado em maior número e com mais frequência. A CPT tem divulgado, a cada ano, um relatório com os registros desta chaga social. Entre 2003 e hoje, foram registrados cerca de 250 casos de trabalho escravo a cada ano. As equipes de fiscalização do Ministério do Trabalho já resgataram mais de 38.000 trabalhadores na roçagem de pasto, na produção de carvão vegetal ou em grandes lavouras. Em 2011, foram 2.500 libertados, entre eles 600 em atividades não agrícolas. 23. Só a custo de muita pressão social, a Câmara dos Deputados aprovou a Proposta de Emenda Constitucional 438/2001, que determina o confisco de propriedades em que for flagrado trabalho escravo e seu encaminhamento para reforma agrária ou uso social. O texto agora está tramitando no Senado onde os ruralistas pretendem modificar a definição de trabalho escravo. Espera-se que, no senado, a tramitação seja mais célere, visto que na Câmara dos Deputados, entre a votação em primeiro turno e a votação em segundo turno passaram-se nove anos! O clamor dos assentados 24. Nas últimas décadas cresceu consideravelmente o número de famílias assentadas em projetos de assentamento da reforma agrária . Assentamentos, a maior parte deles, nascidos pela pressão de sem-terra que ocuparam áreas, acamparam às margens das rodovias ou de alguma outra forma pressionaram o governo. Outros assentamentos são, na realidade, a regularização de áreas já ocupadas há muitos anos e que foram, finalmente, reconhecidas. Na Amazônia, o INCRA criou, também, de cima para baixo, dezenas de assentamentos em área de floresta, sem nenhum plano de uso e sem nenhum cuidado ambiental, provocando, assim, um desmatamento de dimensões impressionantes. 25. Alguns assentamentos podem ser considerados um modelo por sua organização interna e por sua produtividade. Mas o que se vê, na maioria dos casos, é que os assentados acabaram jogados à própria sorte. 26. Atenta, a Igreja escuta os gritos que provém destes assentamentos. É a situação de quem não consegue ter os meios para alcançar uma vida digna. Não há escolas adequadas, o atendimento à saúde é distante e mais que precário, as estradas, os ramais e as vicinais estão em situação péssima. O assentado não dispõe de assistência técnica que o oriente sobre as melhores formas de cultivo. O acesso ao crédito não lhe é facilitado e tem muitas dificuldades para comercializar o que produz. O endividamento é altíssimo e, por falta de uma alternativa mais adequada de produção, o assentado é presa fácil do desmatamento ou do agronegócio, que lhe propõe o arrendamento da terra para o cultivo de cana, soja, eucalipto ou outras, ou que ele próprio produza o que lhe é proposto, sem qualquer ônus para quem o incentiva a isso. Na produção, o assentado, na maioria das vezes, é levado a utilizar insumos químicos e agrotóxicos que prejudicam a terra e, sobretudo a saúde da família. Em muitos casos os assentamentos estão cercados por monocultivos diversos que acabam envenenando a terra, a água e as plantações dos pequenos agricultores. 27. Constatamos, também, que, nos assentamentos de regularização fundiária, os assentados são impelidos, pelo poder público, a criar organizações específicas para o recebimento dos créditos. Estas colidem de frente com a organização social e comunitária existente, provocando, assim, dolorosas e traumáticas divisões internas e facilitando o incrível, inesgotável e invencível desvio de recursos federais e estaduais. O clamor dos ribeirinhos e pescadores 28. Outra situação de opressão é vivida pelos ribeirinhos, sobretudo da Amazônia e pelos pescadores e pescadoras artesanais que, hoje, veem seus territórios sendo invadidos e ocupados, atropelando seu tradicional modo de viver e de lidar com a natureza, de raízes profundas, transmitidas de geração para geração. 29. A pesca artesanal não é somente uma profissão. É um jeito de viver, de se relacionar com a natureza, é responsável também pela manutenção de diversos ecossistemas existentes no país, pois as comunidades pesqueiras extraem da natureza o que ela é capaz de repor, conciliando, de forma harmoniosa, a sua sustentabilidade e a sustentabilidade ambiental dos recursos utilizados. Essa relação é caracterizada principalmente pelo conhecimento que as comunidades têm da natureza e o respeito por ela. 30. Para ribeirinhos e pescadores, o espaço que ocupam é seu território de uso coletivo para sustentabilidade da família, da comunidade e dos estoques pesqueiros. Território que abrange espaços terrestres e o dos rios, lagos, lagoas e mar. Ribeirinhos e pescadores não vivem só na água, precisam da terra e da água, dos mangues e das matas ciliares. 31. Estes territórios tradicionais são considerados espaços vazios e são disputados por grandes empreendimentos empresariais da construção civil, do turismo, para a implantação de parques aquícolas e por projetos de produção de energia, com a construção de grandes barragens e de parques eólicos. Os ganhos econômicos não contabilizam os rios destruídos, os estuários afetados, as populações expulsas, os estoques pesqueiros diminuídos. Além disso, desde 2003, estão em curso planos de privatização de corpos d’água para os aquicultivos, seja do mar, como dos rios. A carcinicultura (criação de camarão em cativeiro) é exemplo disso e está deixando um rastro de violência e insustentabilidade, com degradação das áreas de manguezais. As fazendas de carcinicultura utilizam, em grande quantidade, produtos e antibióticos que contaminam as águas e representam um significativo impacto potencial para a saúde humana. 32. Para satisfazer os interesses do capital em suas diversas atividades, nega-se o pescador e a pesca artesanal, como atividade importante para a economia brasileira, para soberania alimentar e para a diversidade cultural do país. Ribeirinhos e pescadores acabam sendo vistos como entraves para o desenvolvimento e, com isso, se justifica a apropriação dos territórios que eles ocupam. Muitas ilhas e ilhotas importantes para o trabalho e segurança das comunidades pesqueiras estão sendo tomadas, de forma ilegal e com a conivência do estado, para nelas desenvolver grandes empreendimentos de luxo como resorts, marinas, campos de golfe, etc. Os ribeirinhos e os pescadores expulsos dos locais onde suas comunidades e famílias, há dezenas de anos, se estabeleceram, são obrigados a migrar para outros lugares de pesca ou para centros urbanos. 33. Para se libertar desta opressão, o Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais - MPP, a partir da I Conferencia da Pesca Artesanal, realizada em Brasília, em setembro de 2009, fortaleceu sua organização e sua resistência ao modelo de desenvolvimento que esmaga as comunidades pesqueiras, a partir de grandes projetos que concentram a riqueza e degradam o meio ambiente. Suas principais bandeiras de luta são a defesa do território e do meio ambiente; o respeito aos direitos e igualdade para as mulheres pescadoras; a garantia de direitos sociais; a luta por condições adequadas para produzir e viver com dignidade . A mais recente iniciativa assumida pelos ribeirinhos e pescadores e pescadoras artesanais foi convocar a sociedade para a “campanha pela regularização dos territórios das comunidades pesqueiras”, um projeto de lei de iniciativa popular que tem como objetivo assegurar o reconhecimento, a proteção e a garantia do direito ao território de comunidades tradicionais pesqueiras. O clamor dos pequenos produtores familiares 34. Os pequenos agricultores, também, sentem-se, muitas vezes, abandonados e empobrecidos. A atenção à saúde, mais que precária, o difícil acesso à educação e a falta de estradas e transportes que facilitem a comercialização de seus produtos, empurram grande parte das famílias, sobretudo os mais jovens, a buscar melhores condições na cidade. E os que ficam veem sua identidade camponesa se diluir. 35. A pressão do agronegócio acaba expulsando milhares de famílias, a cada ano, de suas terras, com isso mantendo o êxodo rural. Na última década, mais dois milhões de pessoas abandonaram o campo. Os que resistem sofrem por causa do endividamento junto aos bancos e, sobretudo pelo envenenamento pelos agrotóxicos. Grande parte das famílias vê seus filhos buscarem melhores condições de vida na cidade. 36. Outra situação de opressão é a dos agricultores integrados que se tornam reféns de grandes indústrias. As dificuldades começam na hora dos contratos nos quais as indústrias impõem as regras da produção e definem, unilateralmente, os preços dos produtos. Para abastecer o mercado interno e poder exportar grandes quantidades dos produtos, as indústrias forçam os produtores a aumentar a produção, obrigando-os a jornadas exaustivas de trabalho, sem direito aos sábados, domingos e feriados. Os agricultores integrados entram com a terra, a infraestrutura e a força de trabalho e as empresas entram com a matéria prima e ficam com toda a produção. O agricultor torna-se, assim, um prestador de serviços para a indústria, sem carteira assinada e sem direitos trabalhistas. Para evitar reclamações trabalhistas as indústrias forçam os pequenos produtores a se constituírem como empresas. 37. Os interesses das indústrias levam, também, os agricultores a ampliar suas instalações e a se especializar em apenas um tipo de atividade no processo de produção, cortando, assim, a pouca autonomia que o produtor teria ao tomar conta do ciclo completo da produção. O valor pago pelo produto, muitas vezes, não chega a cobrir os custos de produção. Pensando que estão tendo lucro, os agricultores integrados sofrem, na verdade, um empobrecimento crescente. 38. Outro grito do campo vem dos que acabam subjugados pelas grandes empresas de sementes que, com os mais eficazes meios de propaganda, convencem os agricultores a utilizarem sementes transgênicas, que subordinam o agricultor ao controle das empresas às quais ele tem que pagar pelas variedades transgênicas criadas. O agricultor perde o controle sobre as sementes que produz, tanto as sementes naturais, chamadas de tradicionais ou “crioulas”, quanto as sementes que os agricultores vieram melhorando, ao longo de séculos, adaptando as diversas espécies cultivadas às mais distintas condições ambientas e sociais. São milhares de variedades tradicionais de milho, feijão, arroz etc. que os transgênicos substituem, fazendo com que se perca a rica diversidade existente. Tudo isso impulsiona os grandes monocultivos que utilizam poucas variedades da mesma espécie. Estas culturas são facilmente suscetíveis ao ataque de pragas e doenças com grandes riscos para a produção: aumenta, assim, a demanda por agrotóxicos perigosos para o meio ambiente e para a saúde humana e animal e o agricultor fica ainda mais dependente das empresas que, além das sementes transgênicas, produzem, também, os agrotóxicos necessários. Já se tem notícia de pragas resistentes aos agrotóxicos utilizados atualmente, exigindo a produção e aplicação de venenos cada vez mais fortes e perigosos. 39. Muitas são as formas de resistência contra a exploração que pesa sobre os agricultores familiares. A bandeira dos pequenos agricultores é levantada e defendida, de maneira especial, pelo Movimento dos Pequenos Agricultores, nascido em 1996 e que, ao lado de outros movimentos, se propõe a resgatar a identidade e a cultura camponesa, com suas diversidades regionais, a incentivar uma produção agroecológica e diversificada, a valorizar e multiplicar as sementes crioulas e a produzir comida saudável, abundante e barata para o autossustento e a alimentação dos próprios camponeses e das populações urbanas. A Via Campesina junto com muitas outras entidades está desenvolvendo, a nível nacional, a “Campanha contra os Agrotóxicos e pela Vida”, alertando a sociedade brasileira sobre a quantidade de veneno que o consumidor ingere e propondo uma agricultura livre de agrotóxicos e transgênicos. Uma opressão que aumenta em todos os lados 40. Trata-se de uma opressão provocada por um equivocado modelo de desenvolvimento e que alcança todos os lugares do País. Dezenas de milhares de famílias acabaram sendo expulsas por grandes obras, sobretudo as do Programa de Aceleração do Crescimento, PAC, que sob o manto do desenvolvimento nacional, acabam beneficiando os interesses do capital, causando sofrimento e tristeza indizíveis às famílias que são atingidas por eles. São as construções de barragens para hidrelétricas, as obras da transposição de rios, as obras de rodovias, ferrovias e hidrovias. E são, também, as atividades das mineradoras que, por ter legalmente e inquestionavelmente a prioridade sobre o uso do solo, afastam, em troca de indenizações insignificantes, inteiras comunidades que são totalmente desestruturadas. As famílias expulsas são transformadas, de repente, em mão de obra urbana desqualificada. 41. Atualmente estão em atividades cerca de oito mil projetos de produção mineral no Brasil, número que vai se expandir muito com a definição do novo marco legal que está sendo elaborado, no qual os interesses da sociedade são reduzidos a um mero e insignificante aumento dos impostos a serem pagos. Apesar de as jazidas pertencerem à União, elas têm sido utilizadas mais para exploração predatória de tipo colonialista, controlada pelo capital estrangeiro, ao qual não são postos limites de nenhum tipo. Muitas vezes, o controle dos projetos minerários é objeto de simples especulação , como reconhecem até agentes públicos. 42. O Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB está, desde 1989, manifestando sua resistência a este modelo de crescimento energético, em defesa das inúmeras famílias que perderam suas posses e seus meios de sobrevivência, com a construção de barragens. Com seu lema: “água e energia não são mercadoria” eles compreendem que a água e a energia são bens essenciais para a vida das pessoas e para a sociedade, e por isso devem ser um bem público, onde todos tenham acesso com qualidade. Não pode ser privatizadas nas mãos de multinacionais que tem como único interesse aumentar seus lucros . 43. Na resistência á opressão gerada pela mineração nasceram outros movimentos populares, entre eles, em 2007, foram se articulando muitas pessoas e várias organizações, numa coordenação chamada “justiça nos trilhos”, no enfrentamento com uma das mineradoras mais poderosas do mundo. É uma articulação dos que denunciam a agressividade e o poder destrutivo da empresa, com seus impactos irreversíveis, causados ao meio ambiente, com seu desrespeito aos direitos das comunidades atingidas e das leis trabalhistas. Por trás do propagandeado desenvolvimento, esconde-se a obsessão transnacional pelo lucro e pela máxima concentração de riquezas que provocam desrespeito, injustiça, pobreza, sofrimento, morte. É uma articulação internacional de brasileiros, chilenos, peruanos, argentinos, moçambicanos, canadenses, indonésios… Indignados com o saque cotidiano de riquezas que pertencem a nossos povos . A violência que atinge os trabalhadores 44. Milhares de famílias de trabalhadores e trabalhadoras do campo, em todos os recantos do nosso país, gritam pelas agressões e pela violência que sofrem e clamam por justiça. A CPT vem, com fidelidade, registrando os conflitos que envolvem homens e mulheres do campo e as violências que sobre eles se abatem. Desde 1985, cinco anos depois do documento Igreja e Problemas da Terra, vem publicando, ano a ano, os números indicativos dessas violências e desses conflitos, procurando discernir e explicitar as causas de tamanha, incompreensível atrocidade. 45. Os conflitos atingem milhares de famílias a cada ano . Essa violência no campo é somente aquela que chega ao conhecimento e é registrada. Muitíssimos outros casos de violência acontecem sem que ninguém tome conhecimento deles. É sempre importante recordar o grande número de assassinatos por causa de conflitos por terra. De 1985 a 2011, foram registrados os assassinatos de 1.610 pessoas. O que chama a atenção, neste caso, é que só foram julgadas 96 ocorrências e só foram condenados 21 mandantes e 75 executores. A impunidade é a grande alimentadora da violência. 67. Também nos preocupa o grande número de pessoas ameaçadas. A CPT registrou que, entre 2000 e 2010, 1.855 pessoas, em todo o país, foram ameaçadas pelo menos uma vez. 207 delas foram ameaçadas mais de uma vez. 42 pessoas que receberam ameaças foram assassinadas e 30 sofreram tentativa de assassinato. Em 2010, houve o registro de 125 pessoas ameaçadas, e em 2011 de 347.
Posted on: Tue, 15 Oct 2013 01:09:56 +0000

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