O ELEMENTO SURPRESA (editado) Foi morar num quartinho. E - TopicsExpress



          

O ELEMENTO SURPRESA (editado) Foi morar num quartinho. E chamava-o assim porque era pequeno mesmo. Tinha um formato estranho, em L. E neste nicho, colocou apenas uma escrivaninha e uma cadeira. Vale dizer que era ali no L, que ficava a única janela, pequena como o quarto, e que dava para o pátio interno. Um retângulo de cimento, que alguém tivera a infeliz ideia de decorar com vasos de plantas. Mas, feito isto, ninguém se importara em regá-las. Por isso, de sua janela , de sua escrivaninha , ele vira as plantas secarem, uma a uma. Uma noite, enquanto lutava com um verso recalcitrante, pareceu-lhe ouvir um tiro. Fora mais um estampido seco e curto. Não como os tiros do cinema. Apagou a luz do abajur e ficou no escuro completo; tentava em vão ver o que acontecera. Mas, a não ser pelos ramos das plantas secas, sacudidos por uma tênue brisa noturna, nada mais se mexia no pátio. Até que enfim, esgueirando-se rente às paredes , uma sombra moveu-se. Sentiu um calafrio. Ergueu-se e quase colocou metade do corpo para fora. Havia já no portão uma camionete estacionada. Outras formas indistintas aproximavam-se . O que estava dentro, destravou o cadeado, retirou as correntes sem cerimonia, e escancarou o portão, Quem dera tivesse uma lanterna ! pensou; mas aí o descobririam ! Ficou matutando no que fazer. Por fim, lembrou-se do sindico. Morava no 802. Apenas dois andares acima. Enfiou um pulôver sobre o pijama. Não havia tempo a perder. No corredor deserto e penumbroso, preferiu as escadas ao elevador. Subiu de dois em dois degraus. Chegou ao 802 esbaforido e praticamente socou a porta. Pelo tardio da hora, como não houve resposta, esperou. E tornou a soca-la. Nada. Estava agora num mato sem cachorro. Diante da indiferença dos demais moradores, só lhe restava uma alternativa. Enfrentar ele mesmo os malfeitores. Defender o seu castelo. Estufou o peito. À luta ! Antes, voltou ao seu apartamento, não possuía arma. Mas achou um pedaço de madeira que pareceu-lhe de alguma serventia. Olhou mais uma vez pela janela. Contou pelo menos seis pessoas. Havia agora dois tripés com lâmpadas na ponta e cujo facho embebia o pátio numa coloração amarelada. Eram muitos, e ele só. Mas , tinha a seu favor o elemento surpresa. Não havia mais tempo a perder. Olhou com tristeza o caderno sobre a escrivaninha; maldito verso torpe, tivesse encontrado o mote juste e estaria na cama, adormecido. Indiferente às mazelas do mundo. Desceu célere, o coração aos pulos. Chegou à portaria, onde o porteiro da noite dormitava sobre sua bancada. Aquilo ficava para depois. Passou por ele, que roncava, o infeliz ! Testou a porta da frente; pelo menos estava trancada. Deu a volta, e caminhou na direção da entrada de serviço. Aquele era o momento! mas não estava pronto, não se preparara para ele. Tudo era muito precipitado. Vinha alguém; ouvia distintamente os passos aproximarem-se. Espiou rapidamente e voltou a colar-se à parede. Era um deles. Segurou o porrete com as duas mãos. Só teria uma chance. O golpe tinha que ser preciso de maneira a evitar que ele emitisse som e alertasse aos outros. Firmou bem os pés no chão e ergueu o pedaço de madeira um pouco acima da cabeça. Podia ouvi-lo, estava próximo, muito próximo. E quando, por fim, surgiu diante dele ,fechou os olhos e desferiu o golpe com toda a força dos seus músculos. O sindico de fato não emitiu palavra, nem um gemido. Tinha no rosto uma expressão que misturava pasmo e incompreensão. Seu corpo amoleceu e ele foi derramando-se para trás, até estatelar-se no chão. Houve um burburinho. Ele largou a madeira. Levou as mãos à boca para evitar um grito de horror. Neste momento, o agarraram e imobilizaram. O que o pobre homem lhe fez ? pensou ter ouvido alguém perguntar. Deve ser louco ! Por certo, é louco. Amarraram-no a uma cadeira. O porteiro, desperto, veio até ele. Tsk tsk, pobre diabo ! O sindico ia ficar feliz com o jardim novo ! Jardim... novo ? balbuciou. Passou alguém e o porteiro quis saber: sobreviveu ? Nada, o outro retrucou. Mortinho da silva ! Ouviu sirenes. Os tiras chegaram, cercaram a cena do crime, está tudo errado, alguém falou de maneira ríspida, ninguém mexe em mais nada ! Vieram os peritos, examinaram a vítima, tiraram fotos e fizeram marcações em toda a área. Os tiras colheram depoimentos, conversaram muito entre si e por fim chegaram a conclusão de que era um caso simples, eu diria simplérrimo, um retrucou, enquanto um segundo completou, elucidado . Aproximaram-se e o levaram com truculência. Onde já se viu matar o sindico por causa de uma cota extra. Não pode ter outro motivo. Você acha mesmo ? os policiais conversavam como se ele não estivesse ali. Parece que sim. Foi o que disse o porteiro. O assassino morava aqui há menos de dois meses. Ninguém sabe nada sobre ele. E neste pouco tempo , ele e o sindico já tinham tido algumas altercações. Filho da puta ! -.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.- O julgamento demorou menos do que o esperado. O veredito, culpado. Mas, louco. E segundo análise do psiquiatra forense, bipolar e esquizofrênico. Ou algo assim. Antes de ser levado, ainda recebeu a visita do psiquiatra. Não se preocupe, o médico disse. Vai ficar bem. Fiz algumas recomendações. E para onde me mandam ? Hospital psiquiátrico. Se tudo der certo, sai em no máximo três anos. E, de preferência, curado ! Disse o médico, colocando a mão em seu ombro. Posso pedir um favor ? ele murmurou. Diga. Pediu seus cadernos . Queria voltar a escrever. Envio-lhes assim que estiver instalado, prometeu o doutor. O hospital não era ruim. Ficava na região serrana . Tinha 12 alas. A dele, L. Deram-lhe um quarto minúsculo. Mas, pelo menos não teria que dividi-lo com ninguém. A direção, devido ao quadro esquizofrênico, temia pela segurança dos outros internos. Veja, disse o enfermeiro. Havia no quartinho, além da cama, uma mesa tosca, encostada à parede, e sobre ela, seus cadernos. Presente do doutor. Estava medicado, um pouco tonto. Tiraram-lhe as algemas. Ele massageou os punhos. Havia também, um pouco encoberta pela mesa, uma minúscula janela gradeada. Um quarto com vista. Foi até a mesa e abriu um dos cadernos. Justo o que estivera trabalhando. Leu: ouviu um tiro, algo como um estampido curto e seco, nada como os tiros do cinema Obrigado, disse, sem se voltar. E sua voz soou tão compungida, como a de alguém desacostumado a receber presentes, que comoveu aos enfermeiros. Já já trazemos uma cadeira. Deixaram-no a sós. O silêncio no hospital era imenso, sufocante. Esperara gritos e olhares esbugalhados. Mas encontrou internos absortos, alguns dedicados a observar paredes ou a repetir movimentos estranhos. Mas nada muito ruim. Um deles tinha a cela decorada. Paredes cheias de desenhos e rabiscos. Fora um artista famoso, até matar a mulher e o amante, o enfermeiro confidenciou. Agora voltara a pintar. E já recebia visitas, completou, como a encorajá-lo. Sozinho, ele soltou um longo e profundo suspiro. Por fim, aproximou-se e olhou pela janela gradeada . Além dela, havia um jardim bem cuidado, com flores e arbustos podados. Um caminho de cascalho e meia dúzia de bancos de ferro pintados de branco. Havia também um caramanchão de onde ramos de flores amarelas despencavam como uma chuva dourada. E no centro do gramado, robusto e imponente, erguia-se um ipê roxo, cuja copa alta explodia em cores à luz quente daquela hora do dia. 20/08/2013 Rio de Janeiro.
Posted on: Mon, 26 Aug 2013 06:41:25 +0000

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