Por um pacto de travessia - TopicsExpress



          

Por um pacto de travessia Valdemir Pires* A primeira década do século XXI será lembrada como um momento áureo da economia brasileira, mais feliz do que o período chamado de “milagre brasileiro” (1969-1973), em que a taxa de crescimento anual do PIB atingiu patamares superiores aos históricos. Este segundo e mais verdadeiro “milagre econômico 2.0” (vale brincar), vivenciado pelo Brasil na última década, ocorreu sem o pesado ônus da inflação e sem a necessidade dos empurrões aplicados pelo nada saudoso regime militar. A política econômica conduzida pelos governos democráticos desde meados da década de 1990 proporcionou condições adequadas à ação dos empreendedores, as quais amadureceram nos primeiros anos do século XXI, levando ao crescimento sustentado dos investimentos e do emprego. A inflação foi controlada, assim como a dívida externa; as taxas de juros, apesar de ainda altas, foram derrubadas para patamares favoráveis ao aumento da demanda interna, sem expulsar os necessários investimentos estrangeiros em dólares (inclusive os especulativos); chegou-se a uma relação administrável entre a dívida pública e o PIB que, combinada com a obtenção de superávits primários regulares e alteração no perfil e prazo dos títulos, derrubou o elevado risco-Brasil que dificultava a vida do país nos mercados financeiros globais; a capacidade exportadora foi resgatada, melhorando os resultados da balança comercial, do balanço de pagamentos e o nível das reservas em moedas internacionais; o câmbio oscilou livremente entre patamares mínimos e máximos que não chegaram a colocar restrições às relações comerciais e financeiras do país; o crédito para o consumo foi destravado, tornando-se acessível a um grande contingente de pessoas, antes excluídas pelo alto custo e pelas restrições impostas pelo sistema financeiro e pelos bancos. As políticas sociais conseguiram, finalmente, e com uma rapidez inusitada, melhorar a distribuição da renda e, com isso, criar um mercado interno com uma força em que poucos ousariam acreditar antes de provada. O crescimento real do salário mínimo, as políticas de renda focadas nas famílias, os programas habitacionais e outros de menor vulto (como, por exemplo, os que proporcionaram mais acesso aos diversos níveis de ensino e a ampliação da rede de atendimento à saúde), não resolveram todos os problemas de um país secularmente marcado por entraves e contrastes profundos, mas mudaram o seu patamar de desenvolvimento humano a olhos vistos. Por isso, o Brasil, na última década, passou a ser um país respeitado e até admirado em todo o mundo, não só pelo avanço econômico, mas também pela abordagem recém-adotada com relação à pobreza e às desigualdades. Com isso, vem ser tornado um ator relevante em vários organismos internacionais, com novos papéis a jogar num futuro próximo, o que é benéfico, mas também traz novos ônus, que exigem posturas diplomáticas mais complexas. Este país vibrante, que hoje está diante dos olhos admirados dos brasileiros e do mundo, é fruto de uma longa e difícil construção, especialmente no que diz respeito aos desafios econômicos e políticos. Quantas nações deram tamanhos saltos em tão pouco tempo? É preciso evitar que este fato seja ofuscado pelos numerosos problemas antigos, ainda não resolvidos, e pelos problemas novos, que as condições recém-adquiridas terminaram trazendo. Por exemplo: a ampliação dos direitos sociais, formalmente assegurada pela Constituição Cidadã de 1988, depara-se com condições financeiras e administrativas insuficientes para honrá-los, gerando descontentamentos e protestos; os mecanismos de detecção, apuração e punição de atos de corrupção foram criados e estão começando a engrenar, gerando uma talvez falsa noção de que este problema se agravou, quando ele talvez esteja sendo enfrentado como nunca (embora insuficientemente, ainda, frente a uma cultura instalada desde as famílias até os governos, passando pelas empresas e outras organizações); o federalismo fiscal está em frangalhos diante do empurra-empurra para ver que nível de governo terá que responder pelas políticas públicas crescentemente pressionadas; o sistema tributário é uma colcha de retalhos, tingida pela ineficiência e pela iniquidade; o espaço urbano é precário e a capacidade de investimento para adequá-lo às exigências contemporâneas é, e será ainda por muito tempo, insuficiente, acarretando justificadas mobilizações para que melhore. Tudo que o Brasil conquistou, na última década, em termos econômicos, está, hoje, sob risco, entretanto. A política econômica que, por definição, atua sobre o curto prazo (visando eliminar obstáculos à máxima utilização da capacidade instalada, sem pressionar os preços), está tendo que ser esticada por mais de quatro ou cinco anos, para fazer frente aos reveses impostos ao país pela crise financeira internacional persistente. Se esta crise não for solucionado ou amenizada em breve, não será possível manter as políticas monetária, fiscal e cambial tal como hoje se apresentam. Além disso, é bastante duvidoso que o nível de emprego possa ser sustentado com instrumentos anticíclicos tradicionais. Ou seja, na próxima esquina espreitam o desemprego, a inflação, a desvalorização da moeda, o desequílibrio das contas públicas e do balanço de pagamentos. Estando a ousadia ora do lado de um, ora do lado de outro desses bichos perigosos. Por infelicidade, ou não – só a História esclarecerá –, esta encruzilhada econômica está agora coincidindo com outra: a política, iniciada pelas manifestações e protestos de rua que grassam em todos os Estados desde o último São João. Neste campo, entra em jogo um conjunto amplo e diversificado de fatores, relacionados às fissuras de um modo de relacionamento Estado-sociedade civil incompatível com as condições atuais da sociedade do conhecimento, da informação e do protagonismo individual e cidadão (nem sempre indissociáveis); e que dizem respeito, também, à insustentabilidade de práticas políticas nocivas típicas da realidade brasileira, mantidas por partidos, organizações políticas e representativas das mais diversas naturezas e por agentes políticos individualmente considerados (populismo, patrimonialismo, corporativismo exacerbados, por exemplo). Estão em questão a democracia representativa; os partidos; as bases dos processo decisórios coletivos, em geral; o funcionamento das instâncias governamentais; a validade e a viabilidade de oferecimento de políticas e serviços públicos tal como hoje planejados, implementados e avaliados; a continuidade das práticas atuais para assegurar a governabilidade. Por enquanto, as atenções estão voltadas para a encruzilhada política: é ela que está rendendo ganhos para a oposição, comportada, até há pouco, porque o jogo não estava sendo de soma zero, e porque as eleições estavam distantes. Mas parece estar chegando a hora de se voltar a repetir: “É a economia, idiota.” Parece estar chegando a hora em que se terá que admitir, se não publicamente, ao menos no íntimo da razão, que este país recairá nos braços do azar se não tiver o juízo de admitir que a sorte vinha virando a seu favor, historicamente, desde Vargas até Dilma. Vargas, que conduziu a industrialização e a urbanização, sem a qual não haveria país algum; Fernando Henrique, que capitaneou a estabilização, tendo a coragem de enfrentar a caminhada de braços dados com o FMI e o Banco Mundial, praticamente de costas para os desempregados e para a explosão da dívida pública; e Lula-Dilma, que tiveram o juízo de não ceder a tentações mais à esquerda do que aquelas que mantiveram as bases do capitalismo dependente, combinadas com um abrandamento da espoliação pré-capitalista até então prevalecente. Dificuldades econômicas sérias e impasses para a manutenção da governabilidade são ingredientes de uma combinação das menos desejáveis e convenientes para o Brasil, neste momento, não sendo, entretanto, facilmente descartável, a julgar pelo andamento dos indicadores econômicos e pelo aquecimento da temperatura da disputa eleitoral por acontecer. Num quadro com estas características, há que ser fazer todo esforço possível para se chegar a acordos – a um grande pacto, ser for possível – pela costura de um projeto nacional para a travessia dos próximos cinco, em que os dois objetivos maiores sejam o aprofundamento da democracia (por meio de inovações e reformas que reconciliem as ruas com os gabinetes, Estado e sociedade civil, inclusive aproveitando o aprendizado das duas últimas décadas) e a construção de condições econômicas para enfrentar o que ainda está por vir da crise financeira internacional, de modo a assegurar, até o limite possível, o crescimento econômico com melhoria da distribuição da renda. É claro que um pacto desta natureza carece de recuos nos posicionamentos de governo e oposição na defesa de seus interesses eleitorais de curto prazo. Bem como, exige do povo nas ruas que saia do grito ao debate, do descontentamento à formulação. E é claro, também, que não será nada fácil PT e PSDB, por exemplo, peças-chaves na disputa em andamento, admitirem que suas administrações federais recentes foram, cada uma a seu tempo e a seu modo, responsáveis pelos benefícios econômicos que o país está colhendo, assim como pelos malefícios políticos que estão se explicitando, nas últimas semanas, nas praças, ruas, avenidas e sarjetas. E é claro, ainda, por fim, que a militância mobilizada e organizada pelas redes sociais é uma inovação estabelecida, que coloca em xeque as formas tradicionais de fazer política, mas ela não supre o papel dos tradicionais processos persistentes e sistemáticos de debate e negociação de propostas, normalmente presenciais e em arenas concretas de discussão política, com possibilidades de encaminhamento e monitoramento. *Valdemir Pires é economista, professor e pesquisador do Departamento de Administração Pública da Universidade Estadual Paulista (UNESP).
Posted on: Fri, 19 Jul 2013 17:13:28 +0000

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