A pior imprensa do mundo, por Monteiro Lobato A imprensa evoluiu - TopicsExpress



          

A pior imprensa do mundo, por Monteiro Lobato A imprensa evoluiu num sentido imprevisível aos seus ingênuos criadores – aqueles velhos sacerdotes que manejavam a “alavanca do progresso”. Fez-se a picareta do progresso, e cresceu como força social a ponto de penetrar no Estado como um quarto poder. Na futura reforma da nossa Constituição os legisladores serão forçados a aceitar a coisa, legalizando assim uma situação de fato. É a imprensa o poder que completa os outros e lhes manipula os atos para uma conveniente apresentação ao público. Os governos dependem da harmonia dos poderes. Sem esta sobreviria o caos, a guerra intestina – e o governo se devoraria a si próprio. A lúcida inteligência de Campos Sales, depois da sua violência empasteladora contra jornais paulistas, foi a primeira a compreender a nova ordem das coisas. Verificando o erro da resistência às brutas contra a maré montante, aplicou, quando na Presidência da República, um sistema novo, bastante racional; o qual sistema, aceito e desenvolvido pelos governos posteriores, caminha de forma a legalizar-se no futuro em artigo expresso da Carta Magna. É lógico. Não há razão para remunerar os agentes do Poder Judiciário, do Executivo, do Legislativo, e exigir dos agentes do quarto poder gratuidade de serviços. Este lance genial de Campos Sales muito honra o espírito prático dos paulistas, os quais, pioneiros sempre, persistiram na senda do iniciador e alargaram-lhe a obra com a amplitude com que se fazem as coisas em São Paulo. Ao atual governo paulista cabe no movimento um grande passo. Não achou razoável considerar a imprensa sob o aspecto estreito do regionalismo e só admitir em seu posto de quarto poder, regiamente paga, a imprensa paulista. Dados a hegemonia do grande Estado e os seus interesses cada vez maiores na política geral, era imprescindível fortificar o quarto poder com a oficialização da imprensa carioca. A realização da bela reforma dependia apenas duma coisa: dinheiro – e havia-o em quantidade mais que suficiente. Montou-se pois o quarto poder definitivamente, com dotação apreciável. Calcula-se em 300 contos mensais o orçamento da Secretaria da Publicidade, ainda incorporada às outras por motivos óbvios. É bastante para um serviço novo, ainda em período de clandestinidade, mas concordemos que é pouco, dada a importância do quarto poder. É forçoso, pois, prosseguir no movimento, alargar ainda a dotação e regulamentá-la para que cesse o odioso vexame imposto aos agentes do quarto poder, de receberem seus honorários pela verba secreta. É tempo de os sacerdotes de Gutenberg erguerem a cabeça e exigirem o pagamento à plena luz, como se faz com os deputados e os juízes. Nada mais odioso do que esta vexatória exceção. Como também nada mais odioso do que a atitude de certos jornais paulistanos e cariocas, birrentos em não admitirem o fato consumado. Não fosse a funesta posição guerrilheira desses órgãos amarelos, irredutíveis num pirronismo grotesco, teimoso em combater uma evolução muito natural e lógica, e estaríamos já com o Departamento de Publicidade definitivamente instalado. As vantagens para o público seriam imensas. Cessariam as chamadas “campanhas contra o governo” e esses horríveis ataques contra as pessoas dos governantes, os quais ataques dão ao povo a impressão de sermos governados por uma quadrilha. O governo, por sua vez, teria o campo livre para uma “atuação” serena, sem empeços, sem o mínimo aborrecimento. O róseo seria a cor nacional por excelência, porque tudo correria girando sobre mancais de bolinhas S. K. F. Desgraçadamente subsistem por aí uns Catões incompreensivos, gente de fígados maus, incapazes de atinar com as imensas vantagens da unanimidade. Que lhes preste. Ao atual governo de São Paulo cabe ainda a honra de ter reduzido ao mínimo a odiosa facção dos não conformistas. Soube captar para o rebanho não só grandes órgãos de publicidade, como ainda a miuçalha lambareira das revistas. Não tem conta o número dos que se ligaram neste quadriênio à verba secreta por meio do seu cordãozinho umbilical. Resultado: vivem felizes, sem mais a espada de Dâmocles da falência a lhes ameaçar o sono, e fazem felizes aos seus leitores com o dar-lhes uma impressão sempre rósea dos nossos homens e das nossas coisas. O governo de São Paulo deixa no passivo muita coisa má, indigna dum governo decente. Mas para compensação deixa no ativo um gordo saldo que resgata longe tais mazelas. Basta, por exemplo, este simples fato da criação do quarto poder para guindá-lo à primeira plana dos grandes governos da República. É inegável a sua benemerência. No entanto, por uma estranha ironia, não há um só jornal que o gabe sob este aspecto! Elogiam-lhe todos os atos, sua ação financeira, sua atuação agrícola, sua equidade de justiça. Mas a coisa que mais de perto interessa à imprensa não merece dela o mais leve toque… Por quê? Talvez por injunção de velhos resíduos morais, persistentes no caráter moderno como uma espécie de gafeira. Mas a moral, como tudo, evolui. O que é crime hoje pode ser virtude amanhã. O gatuno na Grécia era honrado como um hábil prestidigitador; perdeu o prestígio depois, chegou a ser considerado como o mais infame dos homens; hoje reabilita-se, e terá ainda honras como nunca lhas concedeu o grego. Nas escolas futuras muitas disciplinas inúteis, ensinadas hoje, serão substituídas por outras de alto utilitarismo. Em vez de o mestre interpelar meninos sobre ângulos, triângulos, senos e cossenos, farão perguntas assim: - Quando, ao abrir uma burra, se verifica que a resistência do aço do instrumento perfurante é dois pontos menor que a resistência do aço perfurado, qual a fórmula a adotar-se: a equação da Rocca ou o binômio de Carletto? É tolice, pois, ficarmos toda a vida no Marquês de Maricá, convencidos da imutabilidade dos princípios morais. Le monde marche… e lá vai de roldão Marco Aurélio, Epicteto, o Decálogo, Maricá e quanto fóssil procura entravar as rodas do ex-carro, hoje aeronave do progresso. Já foi, in illo tempore, ato de suborno remunerar a imprensa pelos seus serviços em prol desta ou daquela causa. Hoje a imprensa “advoga” a bela causa governamental, e como esta causa não tem fim, a imprensa, em vez de atacar o serviço parceladamente, com soluções, de continuidade nocivas ao Estado, fá-lo incorporada nele, às definitivas, como uma procuradoria sui generis. Nada mais honesto, mais limpo nem mais inteligente. Nada mais “evolução”. Governar foi sempre uma arte difícil; o surto moderno da imprensa veio agravar essa dificuldade com o pôr-se a imprensa em frequente antagonismo com o governo. O povo, sabendo da ação do governo unicamente por intermédio da imprensa, sofre com a apresentação desairosa que esta lhe faz dos atos. De modo que se tornou impossível governar sem auxílio da imprensa. Mas era imoral suborná-la. Como sair deste dilema? Suprimi-la? Impossível. Amordaçá-la? Pior ainda. A solução única é portanto a paulista, experimentada no último quadriênio com tamanhos resultados: subvencioná-la. Realizada já esta grande conquista, que faz fremir de entusiasmo os ossos de Gutenberg, resta ainda escoimá-la da bioquice hipócrita; e sobretudo poupar ao Quarto Poder a frequência malsã da Verba Secreta. Tenhamos a coragem dos nossos atos. Afirmemos de cabeça erguida a nossa evolução, em que pese aos rançosos moralistas e a esses remanescentes grotescos duma moral morta: os jornais de oposição. Opor-se à prosperidade, à comodidade, às delícias do oficialismo, à aposentadoria, à fecunda irrigação com as águas do Pactolo, somente por amor ao povo, ralé ignóbil indigna do menor sacrifício, é coisa que depõe contra a sanidade mental dos díscolos. Hospício com eles! E, orgulhosa, eliminando o amarelo da gama de suas cores, penetre a imprensa, com desassombro, na fase áurea de sua existência, legalmente transfeira em o Quarto Poder do Estado - com rubrica nos livros do Tesouro e libertada para sempre da aviltante focinhação na gamela suja da odiosa Verba Secreta. Amém. * O texto acima, intitulado O quarto poder, foi escrito por Monteiro Lobato (1882-1948) em 1926. Só mesmo um escritor tão imaginativo e criativo, que deu-nos o Sítio do Picapau Amarelo, poderia conceber o governo paulista pagando regiamente jornais e revistas para que eles transformassem críticas em elogios, ocultando simplesmente tudo de podre ao redor dele, da mesma forma como se oculta diuturnamente a podridão dos que um dia foram os Rios Tietê e Pinheiros.
Posted on: Sun, 14 Jul 2013 13:37:52 +0000

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