A redenção do Deputado - TopicsExpress



          

A redenção do Deputado I Estavam todos acuados. Olhavam desconcertados uns para os outros enquanto se repetiam mais e mais as incessantes pancadas sobre a forte porta de madeira que dava acesso ao plenário da Câmara dos Deputados. Mas não era só isso. Havia o gemido. Um ruído nauseabundo que ficava cada vez maior, se é que isso era possível. Não havia saída. Os remanescentes daquele cenário apocalíptico sabiam que suas horas estavam contadas e que era uma questão de tempo até de uma forma ou outra juntarem-se ao exército de mortos que – de uma inconveniência tremenda – insistia em se convidar para o jantar. O Deputado usava aqueles momentos finais da vida para uma profunda reflexão sobre a sua história. Era de origem pobre, sempre passou dificuldades. Contudo, se esforçava ao máximo não só para superar os obstáculos, como também para removê-los para os outros. Assim, se filiou à associação de moradores do bairro com o objetivo de melhorar as condições do lugar. O sucesso o motivou a entrar na carreira política. Foi vereador e tomou ali, pela primeira vez, contato com o verdadeiro poder. Percebia que poderia chegar mais longe que qualquer um de sua família, que nunca teve lá seu grande expoente. Aliás, isto já cumprira. Poderia chegar mais longe que qualquer um de sua cidade. Essa perspectiva o fascinava. Sempre quisera ajudar aos outros, mas o que ganhava em contrapartida? Sentia-se injustiçado. Dono de um carisma e de uma oratória brilhantes, logo o Deputado conseguiu a liderança na Casa dos Vereadores. Três anos depois, elegeu-se prefeito. Neste momento, sua vontade de ajudar já estava guardada no mais profundo de sua mente. O poder o transformou. Chegou ao ponto de discordar até de Maquiavel. Para nosso Deputado, os fins, sim, justificam os meios. Mas o fim do nosso Deputado não era o bem do “Reino” e sim do “Rei” – ele. E sua família, claro. A família é uma instituição sagrada e não deve ficar esquecida. Logo tratou de colocar seus parentes em cargos públicos proveitosos e lucrativos. E os amigos que o apoiaram? Deveria também ajudá-los! O povo? Este que se virasse. Chegou onde estava por esforço próprio e o tão aclamado “povo” nada o fizera para ajudá-lo. Cada um por si. É esta a sociedade em que vivemos e se quisessem chegar ao poder que o façam por seu próprio talento, assim como ele o conseguira. Após seis anos como prefeito foi eleito deputado estadual e nas eleições seguintes, federal. Aquela percepção da realidade enquanto vereador e prefeito se transformou. Para pior. O poder que tinha como deputado federal era maior do que jamais tivera. E isso porque era um novato e não contava com grande influência sobre os outros. Ainda. Mas já era alguma coisa. E que coisa. Recebia um salário estratosférico e nem o terno pagava. Nem gasolina. Nem nada que qualquer cidadão comum tinha de pagar ganhando vinte vezes menos e trabalhando vinte vezes mais. Só usava seu dinheiro de fato para duas coisas: cocaína e prostitutas. Não havia ainda estes vales. Não oficialmente, pelo menos, mas ele ainda não estava naquele nível. Coca e putas, para o Deputado, são as duas coisas que levam à razão da vida de um homem: alegria e amor. A euforia que a droga causa, para ele, é a melhor sensação do mundo, e o poder de ter uma modelo de nível internacional na cama era todo o amor que precisava. Não queria família. A família limita o poder. Amigos, só aqueles que lhe possibilitariam um retorno no futuro. O que achou mais interessante é que muitos ali eram exatamente iguais a si próprio. Grande parte dos outros deputados poderia sentar-se com ele em algum restaurante dos mais caros do mundo e rir das trapaças ao longo da carreira. Talvez fosse uma conversa agradável. Para se chegar a uma posição tão privilegiada - o Deputado pensava - você tem de ser pior do que aqueles que competem com você. Foi o caso dele, naturalmente. Porém nem todos eram assim. Havia os bons. Inocentes, utópicos, idílicos. Trabalhavam forçadamente – visto que eles têm de compensar o trabalho daqueles como o Deputado – em prol do bem da sociedade. Como se esta fosse boa – ironizou. É um leito de assassinos, psicopatas, estupradores, trapaceiros. Ainda se pensava como das melhores pessoas, visto que nunca matou ninguém com as próprias mãos ou tampouco se excitava com crianças. Também não era hipócrita. Consigo mesmo, pelo menos. Esse era o nosso Deputado. Alguém que acreditava ser uma das melhores pessoas da nossa sociedade. II Estavam presentes trinta e três pessoas. Trinta e duas após um dos colegas mais próximos do Deputado meter uma bala na cabeça de um camarada que fora descoberto com uma ferida suspeita. “Não há espaço para potenciais monstros”. Ninguém, a não ser um, questionou. Finalmente o Deputado pensou encontrar algo que se equipara em selvageria ao capitalismo e a política. A maioria dos residentes ali era composta por parlamentares. Havia três militares armados até os dentes, porém a munição estava no fim, já que a maior parte se encontrava agora nos dentes dos agora sim mortos-mortos. Bem que eles precisavam mesmo de um tratamento dentário. Uma secretária – a qual o(s) Deputado(s) por mais de uma vez levou (aram) ao motel no horário de almoço e se absteve (tiveram) das atividades parlamentares do dia – também estava ali. Completava o grupo a copeira do cafezinho, que distraidamente servia as (extremamente) provavelmente últimas xícaras da sua vida, dois policiais e um desconhecido. Os não-convidados-para-o-jantar do lado de fora formavam um grupo maior. Operários, camponeses, empresários, bancários, mendigos, professores; enfim, gente de todo tipo. O Deputado soltou uma risadinha sincera. Achava aquela situação estranhamente justa. Além de irônica. Tinha certeza que boa parte dos pós-leprosos de agora tiveram vontade de matar vários parlamentares em vida. Todavia, as normas do Estado e da sociedade não permitiam. Logo que foi tudo abaixo, já estavam à porta desejando aquele sangue azul. Não acreditava que os defuntos teimosos fossem à procura de sua classe intencionalmente. Nenhum traço de humanidade lhes restava – talvez a raiva e a fome (e com certeza alguns cortes de cabelo realmente ruins). Queriam apenas o que o Deputado pensava ser uma espécie de ex-canibalismo, e como eram provavelmente a maior concentração humana de todo o país, era natural que ali também houvesse a maior concentração daqueles canibais anacrônicos. Assim, pensou o Deputado, de alguma maneira finalmente se faria algum tipo de justiça popular. Justa ou injusta. III Um Democrata-Cristão subiu ao palanque. Justificando sua posição, pediu que todos fizessem uma oração a Deus pelas suas almas. O Deputado achava aquilo um tanto quanto sem sentido. Se Deus existia, com certeza havia dedo dele naquela loucura toda. Não era, pois, o senhor da vida e da morte? Nunca foi ateu, porém a imagem de Deus como um sacana sádico e de humor negro afiado não lhe convencia. Visualizou a recepção no céu, com Deus às gargalhadas, com lágrimas nos olhos, tirando sarro a cada vez que descrevia como estavam suas caras quando os zumbis finalmente entraram, bem no meio da oração. Hilário! Não. Se Deus pudesse fazer algo por eles naquele momento não teria promovido aquela confusão toda em primeiro lugar, Orações não serviriam de nada, portanto. O Deputado pensou que aquele poderia ser o Juízo Final e os desmortos eram apenas réus que tentavam dar cabo nos retardatários para começar logo o atrasado julgamento. De bônus, ainda ganhariam alguns pontos positivos ao tirarem sua vida. Não gostava dessa ideia do julgamento divino. Se este funcionasse diferente dos que enfrentou na terra, certamente estaria em maus lençóis. Bom, pelo menos não iria para o inferno. Já estava lotado. Não era por isso que os mortos andavam sobre a terra? IV Talvez Deus fosse o cara sacana o qual o Deputado imaginou. A carniça entrou para perseguir os abutres antes de se ouvir o tradicional “amém”. O Deputado estava em um ponto bem distante da porta e observou enquanto os militares e os policiais realizavam pela última vez aquele trabalho que misturava de um modo estranho odontologia e autópsias. Ouviu alguns dos outros deputados amaldiçoando aquele desconhecido. Pelo visto havia sido ele que finalmente teve a gentileza de convidar os até então não-convidados e foi mais gentil ainda em servir (se) o (de) prato de entrada. Viu a secretária sendo comida em uma posição estranha. Sentiu-se frustrado, pois não conseguiu comê-la de um jeito semelhante. Se ela não tivesse mais as pernas, como agora, ele teria conseguido. Ainda jurou que viu a copeira oferecendo café aos mortos-vivos. Indignou-se. Tanto tempo servindo e ela ainda não sabia que o café só vem depois da refeição. E esta ainda estava só no início. Os clientes naturalmente recusaram o café, mas a aceitaram de bom grado. O Deputado ficou agradavelmente surpreso com sua capacidade de continuar sendo sarcástico. Achava aquilo muito bom. Certamente era o único ali que se divertia de algum modo. V Continuou assistindo ao filme de terror. E bem achava que também poderia ser um filme político. Aquela cena era uma interessante metáfora do pensamento marxista – o qual, para conhecer seus inimigos, tivera íntimo contato. As massas finalmente fizeram a Revolução e engoliram aqueles que sempre lhes tiravam a comida da boca. Agora todos são iguais, e o Estado não é mais necessário. Há fome, sim. Contudo, as pessoas nos Estados comunistas também passam fome, não é mesmo? Continuou disperso até que uma forte mordida no tornozelo o acordou. Conseguiu se desvencilhar, mas o dano já estava causado. Olhou ao redor e viu que estava tudo perdido. Ele era o próximo sabor do rodízio. Neste momento pensou se gostaria de uma oportunidade para se reconciliar com a sociedade, com o mundo. Aquele momento em que o vilão se conscientiza do mal que fez e toma uma última boa atitude, mesmo que aquilo não fosse o salvar, na vida ou na morte. Antigamente não era uma pessoa ruim. Pelo contrário! Porém, o poder o corrompera de tal forma que nem querendo ele poderia ser a pessoa que fora um dia. O máximo que conseguiu foi se lembrar que em algum tempo já foi um ser humano comum. O Deputado poderia até pensar que seria melhor um mundo deles do que o mundo que fizera isso com ele. Poderia, mas se lembrou a tempo que não seria mais o Deputado. De repente ouviu uma voz o gritando à sua esquerda. Ele estava no amplo banheiro na outra extremidade, onde os falecidos ainda não haviam dado atenção. Era um dos deputados idealistas que tanto trabalho dava ao Deputado. Particularmente, era o pior deles. Recusou todo tipo de propina e, vendo que a CPI era ineficaz, por pouco não conseguiu uma investigação séria da Polícia Federal, a qual provavelmente causaria transtornos sérios. O Deputado tinha consciência que ele só não fez mais apenas porque tinha certeza que o matariam. E não por temor à vida, mas sim porque mais ninguém, que não ele, poderia lidar melhor com tantos corruptos e de fato fazer alguma coisa. O Deputado preferia ser devorado ali naquele momento a se juntar àquele cara. Pesou as situações e partiu naquela direção se desviando das lentas-mas-rápidas criaturas, não sem antes levar um profundo arranhão no braço direito. Conseguiu chegar e o Honesto fechou a porta. Restaram apenas os dois. O Honesto perguntou se ele estava bem. O Deputado respondeu positivamente. No entanto, as feridas não o deixavam mentir. Honesto nada falou. Foi contrário ao assassinato do trinta e três e manteve a posição para o caso do dois. Bem como o Deputado calculara. O Deputado começou a se sentir mal. Sabia que estava vindo e que em pouco tempo seria um deles. Pediu a arma com duas balas no pente. Argumentou que queria sair por cima. O suicídio é mais honrado que o assassinato. Disse que não queria morrer pelas mãos de outro homem, e muito menos virar uma daquelas coisas. O Honesto cedeu sem questionamentos. Queria dar àquele homem a oportunidade de morrer como queria. O último bom ato. Passou a arma ao Deputado dizendo que acertariam suas diferenças no além. Bem como o Deputado calculara. Assim que recebeu a pistola disparou dois tiros à queima-roupa nos joelhos do Honesto, que caiu com os olhos cheios de surpresa, lágrimas e desespero. As diferenças seriam acertadas ali mesmo. Este foi seu último ato. Sua redenção. Pesou maravilhosamente bem as situações. Finalmente colocaria as mãos naquele filho da puta.
Posted on: Sun, 21 Jul 2013 18:44:02 +0000

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