BRIGA DE TERCEIROS Quando eu era menino leitor da Bíblia para o - TopicsExpress



          

BRIGA DE TERCEIROS Quando eu era menino leitor da Bíblia para o cego Pacanã, nas tardes quentes do meu sertão semiárido, lá no Acari do meu amor, tive uma experiência fantástica e um aprendizado sublime passado para mim por um homem bêbado e tido, por muitos, como louco. É verdade que já falei sobre isso noutra oportunidade. Mas hoje me deu anseios de contar com mais propriedade. Daquela tarde não guardo na lembrança o trecho do Livro dos Cristãos. Mas trago bem aquela figura alta e suas palavras finais. Para adentrar na bodega de Pacanã, precisou se curvar para não bater com a cabeça na porta baixa, quando descia os batentes da calçada dando acesso ao ambiente. Cumprimentou Pacanã enquanto entrava e, como sempre muito educado, pediu licença para sentar-se à mesma mesa onde a Bíblia estava aberta aos meus olhos, antes mesmo de dar boa tarde a Dona Neve, sentada ao lado do esposo, por trás do balcão de madeira. Ali à mesa ele permaneceu ouvindo-me na leitura de voz alta. Bom, eu me lembro bem de quando acabei a leitura. Pacanã, como sempre, instigou-me na compreensão do texto lido. Dona Neve, de vez em quando fazia um aparte para, também, explicar-me certas coisas, em considerações cristãs. O homem, sentado, calado, ouvia a tudo sem pestanejar. Volto a dizer: não lembro sobre o que conversávamos. Em um dado instante ele levantou-se, ajeitou a calça sungando-a no cós para cima do umbigo, pôs a camisa sobre a braguilha e, com uma mão enorme sobre o peito pediu licença para falar. - Posso fazer uma pergunta aos três? - Pois não – Pacanã, como dono do estabelecimento, conferiu-lhe o direito. Ele se aproximou do balcão e apoiando-se com ambas as mãos no grande móvel, olhou para trás, ao meu encontro e mandou que prestássemos atenção. - Na luta da água contra o rochedo, quem perde logo? – perguntou sem repetir a indagação. Eu, menino impetuoso, larguei na frente e respondi. - A rocha. - Por quê – quis saber o homem. Nosso diálogo observado por Dona Neve, ouvido por Pacanã. - Porque “água mole em pedra dura, tanto bate até que fura” – respondi orgulhoso do meu raciocínio rápido e óbvio. - Errou – disse secamente aquele homem, virando o tronco para a frente. Fiquei tentado debater. Calei-me. Dona Neve o fez por mim. - Mas a resposta dele está correta. - Perguntei – explicou o homem – quem perdia “logo”. Água para furar pedra demora muito – matou meus possíveis argumentos. Calou também Dona Neve. Pacanã, sentado à esquerda de quem entrava, por trás do balcão, cabeça abaixada em silêncio me deu a impressão de estar raciocinando antes de responder. Como de costume, tamborilava com os dedos da mão direita apoiada sobre uma bandeja de flandres e cheia de rosas pintadas na lata. E como continuava o silêncio e ninguém mais se arriscou responder, o homem pigarreou solene. - O caranguejo. Quem perde logo é o caranguejo. - Oxente! – eu me pronunciei - e de onde saiu esse caranguejo? – eu quis saber. - Estava repousando na pedra. Quando a água bateu, teve que sair do seu descanso para não ser levado pela maré. Depois de fazer uma breve pausa na fala, aquele homem respirou um pouco mais e sentenciou enquanto estávamos mudos: - É nisso que dá estar no meio de briga alheia. Nem lembro mais se houveram outros argumentos. Nem lembro mais. Porém, esse final de semana eu fui impelido a entrar, como o caranguejo, numa briga que não era minha. Eu me lembrei da xarada de Zé de Pereirinha naquela tarde e achei melhor me recolher noutro lugar, mais seguro e sem me meter aonde não tenha a segurança de tirar um cochilo tranquilo. Que a água e a rocha sigam brigando. Cá já estou em segurança.
Posted on: Mon, 24 Jun 2013 20:27:49 +0000

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