Criatividade desnacionalizada? M. MARGARIDA MARQUES 08/09/2013 - - TopicsExpress



          

Criatividade desnacionalizada? M. MARGARIDA MARQUES 08/09/2013 - Público Quantos foram os portugueses negros beneficiários de medidas especiais? Qual o efeito dos investimentos em habitação social no desencravamento das populações de ascendência africana? Quem são as pessoas e os grupos que conseguiram autonomizar-se? E quem ficou para trás? Nem os dados dos censos, nem outras estatísticas oficiais permitem responder a estas perguntas Vivemos, actualmente, uma situação de pós-imigração. O qualificativo aplica-se em especial às cidades e regiões do país que acolheram, nas quatro últimas décadas, os maiores contingentes de migrantes. Estes espaços são hoje, em determinados aspectos, mais diferentes do resto do país do que eram na fase do crescimento urbano, por via das migrações internas, no século passado. Este processo de desnacionalização, como lhe chamou Saskia Sassen, da Universidade de Colúmbia (EUA), acentuou-se com os descendentes que já aqui nasceram ou aqui foram socializados, que fizeram destes espaços a sua casa, mantendo ligações de alguma proximidade com as origens familiares e outros espaços de dispersão dos grupos de referência. Apesar de a maioria dos fluxos migratórios acolhidos no país ter o português ou o crioulo como língua materna, ser de religião católica e de uma parcela significativa ter a nacionalidade portuguesa, as proveniências registadas são diversas, como diversos são os seus recursos culturais, sociais e financeiros. Muitos, porém, foram canalizados à chegada para espaços e meios de exclusão. A acção pública tem sido pensada por forma a contemplá-los também como potenciais beneficiários das políticas sociais. Mas que possibilidades há de monitorizar os efeitos dessa acção sobre a coesão social? Um problema com os dados O retrato de Portugal que nos é dado pelos Censos de 2011 é o de uma população essencialmente homogénea, sendo de assinalar a excentricidade dos 12% de estrangeiros na zona de maior turismo: o Algarve. Se olharmos para a região de Lisboa, que concentra quase um terço da população do país, obtemos um perfil um pouco mais complexo, mas basicamente também de grande homogeneidade: cerca de 7% de residentes têm nacionalidade estrangeira e 14% viveram a determinada altura no estrangeiro, mas estes são essencialmente retornados de África. Lendo os jornais nacionais ou andando pelas ruas, percebemos que estes dados traçam uma realidade que é apenas aproximativa... Traçam um perfil da população de acordo com atributos sociodemográficos que não permitem compreender alguns dos problemas que hoje se colocam em termos de formação do tecido social, de elementos de diferenciação interna ou de dinâmicas de mobilidade social. A região de Lisboa, em particular, objecto frequente de notícias sobre escolas que carecem de "intervenção prioritária", sobre intervenções policiais nos "bairros críticos", ou sobre a população dependente dos apoios públicos, é uma realidade quase opaca à luz destes dados. Quantos foram os portugueses negros beneficiários de medidas especiais? Qual o efeito dos investimentos em habitação social no desencravamento das populações de ascendência africana carenciadas? Quem são as pessoas e os grupos que, no seio dessas populações, conseguiram autonomizar-se? E quem ficou para trás? Nem os dados dos censos, nem outras estatísticas oficiais permitem responder a estas perguntas. Mesmo quando a informação de base existe, a sua transformação em registo estatístico não é certa. O que permite a eternização de estereótipos. Paradoxalmente, as medidas de integração visando a coesão social contribuíram para alimentar reacções emotivas e a polarização de posições em relação a minorias e imigrantes na sociedade portuguesa. De um lado, entrincheiram-se os que sublinham a persistência de discriminação estampada no monocromatismo dos lugares de decisão - em contraste com a actual composição e diversificação da sociedade portuguesa. E, do outro, os que apontam para a impossibilidade de continuar a canalizar recursos para grupos particulares - sem que se registem, porém, forças organizadas de tipo racista ou xenófobo, situação hoje pouco comum numa Europa onde os sentimentos anti-imigração têm vindo a ganhar forma organizada e peso institucional. Invariavelmente, porém, as dinâmicas sociais raramente se conformam com este tipo de dicotomias simples. Mas há aspectos do quotidiano que podem - e devem - ser inquiridos para entender o efeito da acção pública. Haverá aleatoriedade no insucesso escolar, no desemprego, no encarceramento, na gravidez adolescente? Dezassete anos volvidos sobre as primeiras iniciativas públicas de combate à discriminação e de integração de imigrantes e minorias éticas, com direito a reconhecimento e aplauso internacionais, quais os efeitos sobre a coesão social? Discriminação participada A persistência na sociedade portuguesa de práticas discriminatórias baseadas nos traços físicos, na origem ou na nacionalidade, levou em 1999 à publicação de legislação visando maior eficácia na punição desse tipo de comportamentos. José Leitão, alto-comissário com responsabilidades nas áreas da imigração e das minorias étnicas à época (actual ACIDI, Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural), numa palestra realizada em 2011 por ocasião da celebração do Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial, observa que "entre 2000 e o final de 2010 [houve] um total de 419 queixas [de discriminação racial], que deram origem a 140 processos de contra-ordenação; foram aplicadas pelo ACIME/ACIDI 10 coimas". Olhando para estes números não--publicados, e mesmo sabendo de antemão que a discriminação participada é apenas uma parcela da discriminação total, salta à vista o facto de o número de queixas ser muito baixo: 419 queixas em 11 anos dá uma média de 38 queixas formalizadas por ano, durante um período de crescimento significativo da população imigrante. Também o número de coimas a que as queixas deram origem é baixo: dez, ou seja, menos de uma por ano e menos de uma por cada 40 queixas apresentadas. Segundo ainda José Leitão, esta situação deve-se, pelo menos parcialmente, ao quadro normativo e institucional existente: à legislação "pouco clara e fragmentária", que foi evoluindo de forma pouco coerente, e à falta de interesse das instituições, que ora enjeitam a responsabilidade pela sua implementação, argumentando que não têm competências para assumir tais responsabilidades, ora se enredam em processos complexos e longos. Esta não é uma situação incomum: entre a prática e o estatuído "nos livros" há uma distância que pode variar em função da substância dos direitos e do local de aplicação. Em relação à questão da discriminação de minorias e imigrantes, os dados europeus sugerem que esse hiato é, à escala da UE, considerável. Num inquérito levado a cabo pela Agência Europeia dos Direitos Humanos em 2008 (EU-MIDIS), oito em cada dez pessoas que declararam ter sofrido discriminação na UE não se queixaram; e quase dois terços abstiveram-se por estarem convencidas de que a queixa não traria qualquer mudança. Perante os resultados, o director da agência, Morten Kjaerum, referiu ser necessário construir confiança nas instituições. No entanto, a experiência de discriminação varia significativamente em função dos grupos de referência, havendo linhas de clivagem importantes no seio das populações minoritárias ou com ascendência migrante. A instituição escolar O conhecimento da situação dos jovens das minorias ou descendentes de migrantes já socializados no país de adopção dos pais, mas não imunes à discriminação, é neste contexto importante. São eles a bitola de aferição da qualidade da integração, como refere Alejandro Portes, da Universidade de Princeton (EUA). A escola, em particular, enquanto instituição de formação dos futuros produtores e cidadãos, é um barómetro crucial para perceber o efeito e a eficácia das políticas sociais. Os dados estatísticos oficiais portugueses não permitem uma análise fina, discriminando os alunos que frequentam os estabelecimentos escolares e os seus resultados em função da ascendência. Os últimos dados estatísticos oficiais vindos a público, com essa especificação, mostravam que o risco de experiências escolares anómalas é maior para os estudantes filhos de imigrantes e maior ainda para os jovens de países lusófonos do que para os autóctones. De então para cá, importantes recursos públicos foram aplicados em políticas de coesão social. Em 2004, uma equipa da Universidade Nova de Lisboa realizou um inquérito em larga escala aos jovens de todas as escolas públicas do terceiro ciclo e do secundário de Oeiras, município onde se realizou um enorme Programa Especial de Realojamento, e vários programas de combate à exclusão, alguns com apoios europeus, contemplaram as populações concelhias pobres, incluindo numerosas famílias de origem africana. Mais de 1800 questionários foram feitos, metade dos quais a alunos descendentes de imigrantes. Os resultados mostraram que nos contextos em que se concentram vários factores de exclusão (fraco capital humano dos progenitores, ausência de capital social, baixos níveis de rendimento) os desempenhos dos alunos são francamente abaixo da média. No entanto, a pobreza não é o único factor de insucesso - como o atesta o facto de, em condições sociais semelhantes, as raparigas terem menor insucesso que os rapazes. E a experiência migratória e as características culturais ou étnicas não se constituem, isoladamente, como factores de desvantagem escolar. Por outro lado, o ambiente no interior das escolas é positivamente avaliado pelos alunos e as relações com os professores são generalizadamente consideradas como gratificantes. Apesar dos riscos de exclusão de segmentos específicos dos descendentes de imigrantes, o contexto escolar é, de modo geral, favoravelmente avaliado por todos, não indiciando a formação de atitudes de rejeição institucional observada noutros contextos nacionais. Faltava, pois, ver o que se passava "do outro lado". Em 2009, a mesma equipa realizou, à escala nacional, um questionário a perto de 900 professores. Uma das notas fortes dos resultados do inquérito foi a adesão generalizada à retórica da "interculturalidade" e do respeito pela diversidade. Mas os resultados revelaram também um corpo docente seriamente preocupado com as capacidades das escolas para fazer face a um corpo discente visto como muito diverso. Mais de três quartos dos professores afirmaram ter tido de mudar as suas práticas docentes perante esta nova realidade sociodemográfica; mais de metade segue estratégias de avaliação diferenciadas, destacando-se ainda quase um terço de professores que orientam os alunos descendentes de imigrantes para cursos profissionais e curricula alternativos. Um terço dos professores inquiridos aponta os jovens de origem africana como alunos com insucesso escolar. Discriminação e globalização Estamos habituados a pensar a globalização como o resultado da acção dos grandes interesses económicos e financeiros. Mas há outra dimensão da globalização, como recorda Stephen Castles, da Universidade de Sydney (Austrália), que resulta das práticas quotidianas de pessoas individuais que, aproveitando as aberturas da globalização, tecem redes que contribuem para novas configurações "glocais". Os imigrantes e os seus descendentes são obreiros privilegiados dessa reconfiguração. Em certos espaços urbanos, os jovens descendentes de imigrantes são hoje actores da economia criativa local - por razões demográficas, pelas suas capacidades de inovação cultural, mas também pelas ligações transnacionais que mantêm. São "talentos" que podem ajudar a inverter dinâmicas recessivas, apoiando estratégias de desenvolvimento local. Noutros lugares, pelo contrário, surgem associados a dinâmicas de marginalidade e enquistamento. A discriminação pode, sobretudo nas zonas urbanas e no seio das comunidades locais, vir a ter um efeito boomerang: acentuar clivagens e afastar os jovens descendentes, fisicamente mais móveis, culturalmente mais preparados e mais bem posicionados para aproveitar os ventos da globalização, das instituições nacionais. Enquanto os que têm menos qualificações, os migrantes mais velhos e em geral os menos móveis, dificilmente conseguirão escapar ao enquistamento. Se a sociedade portuguesa pretender continuar a acompanhar as orientações da UE em matéria de economia criativa e posicionamento à escala global, estas dinâmicas sociais terão de ser estudadas - e acauteladas as condições do seu acompanhamento.
Posted on: Sun, 08 Sep 2013 20:50:57 +0000

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