Hans Cristian Andersen Dinamarca, 1846. A Rainha da Neve Um Conto - TopicsExpress



          

Hans Cristian Andersen Dinamarca, 1846. A Rainha da Neve Um Conto de Fadas Dividido em Sete Histórias 3ª história. O jardim da mulher que praticava magia Que fez Gerda ao ver que Kai não mais voltava para casa? Saiu perguntando a todo mundo aonde ele teria ido, mas ninguém sabia responder. Os meninos que tinham estado com ele na praça apenas puderam informar que o haviam visto em seu pequeno trenó, seguindo a reboque atrás de um outro maior, em direção aos confins da cidade. Ninguém sabia de seu paradeiro, e a pequena Gerda chorou amargamente. Depois de algum tempo, as pessoas começaram a dizer que ele teria morrido, e que provavelmente havia caído e afundado no rio escuro e profundo que corria junto aos muros da cidade. Aquele foi um inverno longo e melancólico. – Kai foi-se embora para sempre! Morreu! – soluçou a menina. – Hum... acho que não – murmurou um raiozinho de sol. – Pois eu acho que sim. Que me dizem, andorinhas? – Nós também achamos que ele não morreu. Essas palavras reacenderam a esperança da pequena Gerda. “Vou calçar meus sapatos vermelhos”, pensou ela, “que Kai ainda não conhece, e seguir até a margem do rio, para indagar de seu paradeiro.” Bem de manhãzinha, antes que a avó despertasse, Gerda beijou-a, calçou seus sapatos novos, caminhou até o fim da cidade e chegou à margem do rio. Olhando para suas águas escuras e profundas, perguntou: – É verdade que vocês levaram meu amiguinho? Devolvam-no para mim, e lhes darei estes sapatos vermelhos, que estão novinhos. Pareceu-lhe que as águas ondularam de maneira diferente, como se concordando com sua proposta. Assim, tirou dos pés o par de sapatos vermelhos, de que tanto gostava, atirando-os no rio. Eles caíram não longe da margem, e as ondinhas trouxeram-nos de volta para ela. Era como se o rio não quisesse aceitar o presente, já que não tinha carregado Kai. A pequena Gerda não entendeu assim, achando que era necessário atirá-los mais longe, bem no meio da correnteza. Assim, entrou num bote que estava parado entre os caniços da margem, caminhou até a proa e atirou os sapatos novamente, dessa vez no meio do rio. O bote não estava amarrado, mas apenas com a popa afundada na areia da margem. Com o peso de Gerda, ele se desprendeu e começou a flutuar livremente. Quando ela o percebeu e quis sair, não havia mais jeito – o bote deslizava pelas águas, acompanhando a correnteza. Pobre Gerda, como ficou assustada! O bote descia cada vez mais rápido. Tudo o que podia fazer era sentar e chorar. Só os pardais escutaram, e eles não tinham como levá-la de volta para a margem. Preocupados com a situação, foram acompanhando o bote e piando: – Tô aqui! Tô aqui! Esperavam com isso levar-lhe pelo menos algum conforto. O bote seguia rio abaixo, levando para longe a pequena Gerda, calçada apenas com meias. Os sapatos flutuavam logo atrás, sem conseguirem alcançá-la. Lindas paisagens estendiam-se ao longo das duas margens. Viam-se aqui e ali campinas semeadas de flores, pastos verdejantes, vacas e ovelhas. A única coisa que não se via era gente. “Talvez o rio me leve até onde está Kai”, pensou Gerda, tranquilizando-se com essa ideia. Sentindo-se mais confortada, começou a apreciar as belas paisagens que se sucediam a sua volta. Num dado momento, avistou ao longe um pomar, no qual só havia cerejeiras. No meio dele havia uma estranha casinha com teto de palha, de janelas verdes e azuis. À frente da casa, dois soldados de madeira montavam guarda, apresentando armas a todas as embarcações que desciam o rio. Pensando que estivessem vivos, a pequena Gerda acenou e gritou, mas evidentemente não recebeu resposta. O rio, ali, fazia uma curva, e a correnteza acabou atirando o bote sobre a margem, onde ele parou. Ela começou a gritar, pedindo socorro. Uma velha apareceu na porta da casa. Trazia na cabeça um chapéu de abas largas, lindamente pintado de flores. – Pobre criança! – exclamou, ao ver Gerda. – Que está fazendo nesse rio, sozinha, tão longe de casa? A velha caminhou até a margem e puxou o barco com seu cajado, até sentir que ele já estava firme na terra, sem perigo de escapar. Gerda saiu e atirou-se nos seus braços, embora sentisse algum medo daquela velha de aparência tão estranha. – Quem é você? – perguntou-lhe a velha. – E como se meteu nessa aventura? Gerda contou-lhe tudo, e a velha escutou calada, fazendo que sim com a cabeça. Gerda perguntou-lhe então se havia visto Kai, e ela disse que não, mas que provavelmente ele mais cedo ou mais tarde deveria passar por ali. Em seguida, consolou a menina, convidando-a a comer algumas cerejas e a conhecer as flores do seu jardim. Eram flores lindas, disse ela; mais bonitas que as dos livros de figuras, e cada uma sabia contar uma linda história. Depois, levando Gerda pela mão, entrou em casa com ela. As janelas eram muito altas e tinham vidraças coloridas, que deixavam passar a luz do sol, iluminando estranhamente a sala. Sobre a mesa havia uma tigela cheia de deliciosas cerejas, que ela comeu o quanto pôde. Enquanto Gerda matava a fome com as cerejas, a velha penteou-lhe os cabelos com um lindo pente de ouro, arranjando-os em cachos que pendiam graciosamente sobre suas faces coradas. – Há quanto tempo estou esperando que uma garotinha como você aparecesse por aqui – disse-lhe a velha. – Vamos ser boas amigas, vai ver. À medida que seus cabelos eram penteados, Gerda ia-se esquecendo cada vez mais o companheiro Kai. A velha entendia de magia e, embora não fosse uma feiticeira malvada, gostava de praticar um pouco, apenas para seu próprio entretenimento. Depois de conhecer Gerda, ficou desejando ardentemente que a menina resolvesse morar com ela. Para conseguir seu objetivo, foi até o jardim e, sem que Gerda visse o que ela fazia, apontou seu cajado para as roseiras, que imediatamente perderam todas as suas flores. Seu receio era de que a menina, vendo as rosas, acabaria por lembrar-se de Kai, desistindo de ficar ali e saindo de novo à procura do amiguinho. Agora que já havia realizado a mágica, não havia nem sinal de rosas naquele jardim. Só então ela chamou Gerda para mostrar-lhe o jardim. Oh, como era lindo! Havia ali todas as flores que se pudessem imaginar, abertas e viçosas, como se estivessem na estação do ano favorável a cada uma delas. Nem mesmo as flores que aparecem nos livros ilustrados eram tão belas quanto as daquele jardim. Gerda pulou de contentamento, e ficou brincando entre elas até que o sol se pôs por detrás das cerejeiras. Depois desse dia agitado, ela foi deitar. Como era encantadora a cama que a velha lhe arrumou, forrada com um gostoso cobertor acolchoado de vermelho, recheado de pétala secas de violetas. Ali ela dormiu confortavelmente, tendo sonhos mais agradáveis que os de uma rainha na noite de núpcias. No dia seguinte, lá foi ela de novo brincar entre as flores, sob os raios tépidos do sol. E assim, foram-se passando os dias. Por fim, Gerda já conhecia cada flor daquele jardim; entretanto, embora fossem tantas e tão diferentes, parecia-lhe que faltava uma. Qual seria? Certa vez em que conversava com a velha, reparou nas flores pintadas em seu chapelão de abas largas, notando que entre elas havia uma rosa. Ela fizera desaparecer todas as rosas do jardim mas se esquecera daquela. Vejam só que distração... – Veja! Uma rosa! – exclamou a menina. – É a flor que faltava em seu jardim. Por quê? Ela voltou a examinar todas as flores, constatando que de fato não havia entre elas uma rosa sequer. Sentiu-se extremamente triste, e até chorou, derramando lágrimas sentidas sobre a terra, exatamente num lugar onde antes havia uma roseira. Isso fez com que logo surgisse do chão, crescendo e desabrochando-se em flores maravilhosas, a roseira que a mulher fizera desaparecer. Gerda beijou aquelas flores lindas, lembrando-se imediatamente das rosas que havia em sua casa e de suas brincadeiras com o pequeno Kai. – Deus do céu, há quanto tempo estou aqui! – lamentou-se. – Tenho de encontrar Kai. Ó rosas lindas, sabem onde ele está? Será que morreu? – Se ele estivesse morto, nós saberíamos – responderam as rosas. – Estivemos por longo tempo sob a terra, para onde vão os mortos, e ele não estava ali. – Obrigada, minhas queridas. Em seguida, saiu perguntando às outras flores se sabiam onde estaria o seu amigo. Felizes por estarem aquecendo-se ao sol, as flores contaram-lhe muitas histórias, mas nenhuma sabia coisa alguma a respeito de Kai. Vejam, por exemplo, a história que a flor-tigre lhe contou: – Ouça o som do grande tambor: buum-bum! Buum-bum! São apenas duas batidas, uma longa e uma curta: buum-bum! Escute o canto fúnebre das mulheres, ouça o cantochão dos brâmanes. A viúva do hindu está parada diante da pira funerária, vestida com uma longa túnica vermelha. Em breve, as chamas haverão de devorar o corpo do marido e seu próprio. Ela pensa em alguém que está ali perto, entre aqueles que lamentam a morte de seu marido. Seus olhos ardem mais fortemente que as chamas que já lambem seus pés, e os olhos desse alguém fazem o seu coração incendiar-se mais do que o fariam as chamas que estão prestes a reduzir seu corpo a cinzas. Pode o fogo da pira funerária extinguir a chama que arde no coração? – Que história esquisita! Não entendi nada! – estranhou Gerda. – Que posso fazer? É a história que eu sei – desculpou-se a flor-tigre. Gerda voltou-se então para a madressilva e repetiu-lhe a pergunta. Eis o que a flor respondeu: – Lá no alto, onde termina a trilha da montanha, o velho castelo debruça-se sobre a encosta alcantilada. Suas antigas muralhas são cobertas pela hera verde, e os ramos de videira estendem-se sobre a sacada, onde se encontra uma bela jovem. Nem os botões de rosa têm mais frescor, nem a flor da macieira, carregada pelo vento, consegue ser mais leve ou dançar mais delicadamente que ela. Escute o farfalhar de seu vestido de sede. Será que ele vem? – Ele, quem? – atalhou Gerda. – Está falando de Kai? – Estou apenas contando minha história, meu sonho – respondeu a madressilva. Depois foi a vez da margarida: – Entre duas árvores, oscila uma gangorra. Duas meninas delicadas, usando vestidos brancos como a neve, e de cujos chapéus pendem fitas verdes, balançam-se preguiçosamente, para a frente e para trás. Seu irmão mais velho está de pé na gangorra, segurando-se às cordas para não cair. Numa das mãos ele traz uma tigela, e na outra um canudo. Está brincando de soprar bolhas de sabão. Enquanto a gangorra vai e vem, as bolhas se espalham pelo ar, mudando de cor o tempo todo. Sai por fim a última bolha, e o vento a carrega consigo. Um cãozinho preto ergue-se sobre as patas traseiras, tentando pegar a bolha; não consegue; late para ela, que logo se desfaz. Eis o meu conto: um balanço e um mundo de espuma borbulhante. – Seu conto pode ser bonito – comentou Gerda, – mas tem um quê tristonho; além disso, não há nele a menor menção a Kai... Acho que vou conversar com o jacinto. – Era uma vez três lindas irmãs – começou o jacinto, – tão suaves e delicadas, que eram quase transparentes. A primeira vestia-se de vermelho; a segunda, de azul; a terceira, de branco. Dando-se as mãos, as três dançavam à beira do lago. Não eram fadas, eram três crianças de verdade. Uma doce fragrância chegou-lhes da floresta, e elas se dirigiram para lá. O perfume tornou-se mais doce e mais intenso. Eis que surgem três esquifes, tendo dentro as três belas irmãs. Deslizaram para o lago e flutuaram, rodeados por vaga-lumes, que piscavam como pequenas lanternas aladas. Que aconteceu com as jovens bailarinas? Estão mortas, ou apenas adormecidas? O perfume das flores diz que elas morreram, e os sinos tangem o dobre de finados. – Ah, como você me fez ficar triste! – disse a pequena Gerda. – E o perfume de suas flores é tão forte, que não me deixa esquecer as pobres menininhas mortas. Será que Kai também está morto? As rosas estiveram no fundo da terra e me disseram que ele não morreu. As flores em forma de sino dos jacintos bimbalharam: – Blim, blão! Não estamos tocando para Kai. Não o conhecemos. Estamos apenas cantando a única cantiga que sabemos. Gerda aproximou-se de um botão-de-ouro, que se destacava, amarelo, entre folhas verdes. – Diga-me, pequenino sol: sabe onde está meu companheiro? O botão-de-ouro voltou para ela sua face radiante, mas também tinha sua própria canção, e ela não falava de Kai. Num pátio pequeno e estreito – começou o botão-de-ouro – brilhava o sol do Senhor: era o primeiro dia da primavera. Os raios de sol faziam rebrilhar o muro caído da casa vizinha, junto ao qual se via uma pequenina flor amarela, a primeira que desabrochou. Seu colorido acentuava-se à luz do sol, tornando-se dourado. A velha avó trouxe sua cadeira para fora, a fim de se esquentar. Chegou ali para visitá-la uma jovem criada – era sua neta. Ao ver a avó no pátio, beijou-a. Havia ouro no seu beijo, o ouro do coração. Ouro na boca, ouro no chão, ouro nos tépidos e alegres raios de sol. Esta é a minha pequena história. – Oh, minha pobre vovozinha! – suspirou a pequena Gerda. – Deve estar sentindo saudades de mim, na maior aflição, como ficou quando Kai desapareceu. Mas hei de voltar para casa em breve, levando-o comigo para lá. É perda de tempo indagar das flores seu paradeiro, pois cada qual só sabe ficar contando sua própria história. Para poder correr mais depressa, prendeu a barra de sua saia comprida na cintura e pôs-se a caminho. Quando passou pelos narcisos, um deles roçou-lhe a perna delicadamente, e ela parou para fazer mais uma tentativa de encontrar o companheiro. – Sabe de alguma coisa, narciso? – perguntou, inclinando-se para a flor. – Só vejo a mim mesmo! Só vejo a mim mesmo! – disse o narciso. – No sótão daquela casinha vive a bailarina. Parada na ponta de um dos pés, ela estende a outra perna, desferindo um pontapé no mundo, que não passa de uma miragem. Inclinando a chaleira, derrama um pouco de água numa pequena peça de roupa: é o seu corpete, que ela está lavando. A limpeza é vizinha da pureza. Pende da parede seu saiote branco, que também foi lavado com água da chaleira e depois estendido no telhado para secar. Agora ela o veste, e amarra no pescoço um lenço amarelo, cor de açafrão. O contraste do lenço faz o saiote parecer ainda mais branco. Ergue a perna bem alto e dobra o corpo bem devagar. Só vejo a mim mesmo! Só vejo a mim mesmo! – Pois eu não quero vê-lo, e nem me interessa escutá-lo – zangou-se Gerda. – Que história mais boba! Prosseguiu seu caminho, correndo até a outra extremidade do jardim. O portão estava fechado. Ela sacudiu a tranca enferrujada, até que ele se abriu. Gerda saiu e se pôs a caminhar descalça pelo vasto mundo afora. Três vezes olhou para trás, mas ninguém havia parecido ter notado sua fuga. Por fim, cansada de tanto caminhar, sentou-se sobre uma pedra. Olhando ao seu redor, viu que o verão já havia acabado, e que o outono já caminhava para o fim. No jardim da velha, não se notava a mudança das estações, pois ali reinava o eterno verão e vicejavam as flores de todas as épocas do ano. – Misericórdia! Quanto tempo perdi! – lamentou-se. – Já estamos no outono! Não posso me dar ao luxo de descansar. Dizendo isso, levantou-se e seguiu em frente. Seus pés doíam e ela se sentia fatigada. As folhas do salgueiro haviam amarelecido, e muitas já tinham caído no chão. Gotas frias de orvalho desprendiam-se delas uma a uma, sem pressa. Só se viam frutos nos abrunheiros, mas estavam muito amargos. Oh, como o mundo parecia triste e sombrio...
Posted on: Tue, 01 Oct 2013 01:45:44 +0000

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