PARTE Nº: SILÊNCIO, TRAUMA E PSICOSE No encontro de duas - TopicsExpress



          

PARTE Nº: SILÊNCIO, TRAUMA E PSICOSE No encontro de duas pessoas, quando a cabine do trem é o consultório, há aquele que deve falar e aquele que deve escutar. O que ali acontece, porém, embora vise um deles, é pertinente aos dois. A estrada de acesso a esse estranho se faz tanto de palavras como de silêncios. Na cabine do consultório, o passageiro do lado é que vai falar, calar-se e expressar silêncio. Ao outro homem cabe a tarefa de escutar a palavra, o silêncio do homem do lado e o de si mesmo. E é uma tarefa muito difícil, pelos estreitos limites da atuação do analista. Esquece-se com freqüência do “novo método” de Fanny (fique quieto, não diga nada, não me toque). Pelo incômodo que sofre com a pausa, ou com a tensão gerada pela suspensão da palavra, o analista cuidará de não se adiantar na função, de não oferecer cuidado a mais, de não demonstrar sabedoria, ou ainda de não cair na armadilha das perguntas concretas e abruptas, desmentidos da escuta neutra. Nem sempre o que presta melhor serviço é justo, aquele que mais ama. A porta para a saída do labirinto do silêncio vem do próprio Freud (1976 [1918]), em Uma neurose infantil: Afinal, seriam encontradas nele, lado a lado, duas correntes libidinais contrárias, das quais uma abominava a idéia de castração, ao passo que a outra estava preparada para aceitá-la e consolar-se como uma compensação. Para além de qualquer dúvida, porém, uma terceira corrente, a mais antiga e profunda, da qual nem sequer poderia suspeitar, era capaz de entrar em atividade. Poder-se-ia dizer que nas duas primeiras correntes está presente o tacere, mas a terceira, fora de qualquer dúvida, é o lugar do silere. Há, por força de proibição, interdito, veto, negação ou medo de falar, uma sombra muda ameaçando a vida. Ali, só o silêncio é o escudo possível para se continuar vivo à espera da palavra que faça a luz. Há dois exemplos advindos da pintura, que vale a pena lembrar: Gilles, de Antoine Watteau (1684), e O Grito, de Edward Munch (1863). Os quadros parecem mudos, mas não se esgotam na forma e na cor do que retratam. Falam todo o tempo, impressionando o espectador com a riqueza do que expressam. “Quem o ouviria, esse grito que não ouvimos, senão justamente porque ele impõe esse reino do silêncio que parece subir e descer nesse espaço centrado e ao mesmo tempo aberto? O grito se faz abismo, onde o silêncio se precipita” (Lacan, 1967 apud Nasio, 1989). Os quadros falam, sem palavras, da dor e do sofrimento que ali habita. Da mesma forma, o discurso e a grafia deixam marcas, códigos, subtextos. A verdade pode ser comunicada nas entrelinhas. O deciframento analítico é possível, na captação dos símbolos e na perseguição dos deslocamentos. Duas preciosas ferramentas para a compreensão da mensagem são a atenção flutuante e a escuta neutra. Nicolas Torok, a despeito do caso clínico de Freud (1976), Uma neurose infantil, decodificou o enigma da morte em Sergëi Pankejeff, na criptografia da história familiar, no rastro das gerações... Assim também as investigações criminais passam horas ouvindo o morto. Em linguagem policial, o corpo da vítima transmite um sem número de preciosas e fundamentais informações de tempo, lugar, forma, circunstâncias da morte, além de características do assassino ou dos assassinos, tipo de arma, direção dos disparos, se profissional ou amador. Enfim, quais foram os últimos atos do morto. Se não se mexe na cena do crime é para não calar sua voz, embora o ato vise silenciar a vítima. Morris West (1959) escreveu um primoroso livro sobre o silêncio do trauma, ao transformar em romance um crime cometido na Toscana. O prefeito da cidade é morto por uma jovem de vinte e quatro anos, em pleno dia, de posse de suas faculdades mentais. A bela obra se chamou A filha do silêncio. A defesa, impotente diante das evidências, buscou para Desqualificar a acusação motivações psicológicas para o assassinato. Uma das testemunhas arroladas foi o catedrático de medicina psiquiátrica da Universidade de Sienna. Assim se resume o depoimento: Literalmente, a palavra trauma (τραυμα), do grego, significa ferida. No sentido médico refere-se a uma condição mórbida do organismo, causada por um agente externo. No sentido psiquiátrico é uma cicatriz na alma causada por um choque emocional. Se se pode explicar mais claramente, uma cicatriz num dedo é um trauma, embora leve. As deixadas por uma cirurgia são mais sérias. Existem graus similares de cicatrizes, quanto ao que se refere à psique humana. Aqui, o indivíduo que padece a experiência traumática aprisiona-se no desamparo. (...) Nossos atos possuem múltiplas motivações, algumas até de nosso desconhecimento. Quanto à cura, um tratamento por meios medicamentosos e Psicoterápicos é sempre recomendável e pode diminuir os efeitos do trauma, o que nem sempre se pode esperar nos casos de um trauma psicótico. Psicose é um desarranjo psíquico profundo, grave e mais ou menos permanente, nem sempre curável, revelando-se através de enfermidades mentais e comportamentos imprevisíveis. Sophie Morgenstern (1927) foi a primeira psicanalista, na França, a usar o desenho como instrumento de análise em um caso de mutismo. Desenvolveu um método de escuta através dos olhos. O trabalho consistia em observar o paciente, fazer desenhos com ele, já que não dizia uma só palavra. O menino Jacques, de oito anos, lhe foi encaminhado no hospital para atendimento psicológico. Parara de falar aos dois anos. Tornou-se arredio e passou a contrair uma série de enfermidades. O horror de que uma criança é tomada a faz riscar de cena toda a Significação. Enterra o espelho para o qual não suporta olhar. Para tanto, remete a cena para algum outro lugar. Mas a carga é deslocada, como em Jacques, gerando sintomas. A análise não consiste, a rigor, em partir do menos conhecido ao mais conhecido, mas abre-se, no silêncio e na palavra, para uma nova organização. As representações gráficas se tornam, antes de tudo, radiografias da própria história. Desorganizadas, acenam para uma nova arquitetura. Mesmo mudo, não ficou sem palavra. O menino, com o tratamento, entendeu e decifrou o enigma: Tu es cela! Tuer cela! Si tu te tais, elle te tue!7 A falta de simbolização na psicose escorrega para o concreto. E ali, onde “você é isto”, o que poderia significar fugir ao aprisionamento no horror, vai justo ser o lugar do “matar isto”. Ou “você morre”... Se o horror vai se aninhar no estranho, a dor é capaz de criar uma ruptura na subjetividade, fazendo emergir um duplo. Lacan (1975 [1932]), na sua tese de medicina, Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade, conta a história de Marguerite Pantaine Anzieu, que depois do nascimento de seu filho, Didier Anzieu, iniciou um comportamento delirante, sentindo-se perseguida por uma famosa atriz, Hughette Duflos, que sequer conhecia. Aguardando a chegada de Hughette para sua apresentação da noite, golpeou-a com uma navalha. Diz Lacan que com o mesmo golpe, que a torna culpada perante a lei, ela fere a si mesma. Morgenstern surpreendeu-se com a clareza da produção gráfica de Jacques, marcadamente hostil. Entendeu cedo que era o canal de comunicação do menino, arranjo possível após os dois anos. Foi a forma pela qual o inconsciente do paciente encontrou uma solução salutar para com a violência que o horrorizava e atormentava, desde a tenra infância: medo de que o pai lhe cortasse a língua, como foi ficando claro para a analista, ao longo do tratamento. Para não perder a língua fecho a boca. E me calo. A palavra e o silêncio do analisando regem o silêncio e a palavra do analista, é o que estamos todo o tempo afirmando. No entanto, o analista dispõe de alguns instrumentos, de modo particular, a própria análise para poder discernir o consistente do superficial. Deverá também, sobretudo na criança e no adolescente, silenciar menos, interpretar com moderação e até superficialmente, como já se falou, visando dar unidade ao ego fracionado, para depois acolher o que o paciente quer e precisa dizer, indo da superfície à profundidade, até porque o analisando necessita, em primeiro lugar, sentir-se real. Assim, perceberá a fragmentação associativa do histérico: as rupturas permanentes do discurso do obsessivo, seu isolamento afetivo; a pesada monotonia monocórdica da depressão; a racionalização maciça da paranóia; os aporemas, a incoerência lógica do esquizofrênico; as oscilações do distímico; a morte eivada de culpa no melancólico; o ecoativo e especular no narcísico. O paciente de Sophie Morgenstern compreendeu cedo que o prazer de falar estava atrelado ao preço de uma grande dor, a perda da língua. O silêncio era uma nova ordenação, para fazer calar o horror, embora com a renúncia do prazer da palavra. Pode-se dizer que o silêncio se fecha ali, onde se inscreve a dor, onde repete, com som e fúria, o grito sufocado. E se o ônus é uma exclusão, pode ser esta a troca possível. Numa linguagem freudiana, sobrevém uma limitação significativa na pulsão de vida. O cuidado da analista foi evitar o ativismo terapêutico, para que não se tornasse ruído, opondo-se à falta da palavra. Teve o grande mérito de perceber que ela e ele precisavam do silêncio. O silêncio dele era uma proteção. O silêncio dela era uma espera. Entre os dois, a dor e a arte. A analista concluiu sua apresentação com a notícia de que Jacques, aos poucos, começou a falar, pondo em palavras o que já estava dito nos desenhos. Quem lhe cortava a língua era ele mesmo. Eu não falo a partir de onde acredito falar. Ou, por tautologia: Eu não me calo a partir de onde acredito silenciar.
Posted on: Thu, 24 Oct 2013 16:24:33 +0000

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