DO QUE SE PODE DOAR. Inverno é tempo de ser convocado (pela - TopicsExpress



          

DO QUE SE PODE DOAR. Inverno é tempo de ser convocado (pela gente mesmo ou por alguma propaganda) a doar roupas quentes. Basta sentirmos o gelo dentro de casa, encorujados debaixo de meia dúzia de cobertores, para termos certeza que muita gente precisa ser aquecida por blusas e casacos que há algum tempo só fazem figuração dentro dos nossos armário. E no ímpeto de melhor organizar cabides, prateleiras e gavetas, nesse ano pratiquei como nunca o desapego. Ao ver a pilha de roupas sobre a cama, de braços cruzados flagrei-me no espelho, escondida detrás daquele montinho feito de tecido que eu observava com certa indiferença. Por razões que a própria razão desconhece - aquelas do coração - desenterrei de toda aquela lã um daqueles episódios marcantes da minha infância. Voltemos a 1994. Mais especificamente, talvez, ao meu casaco preferido naquele tempo: cor-de-rosa, de moleton e com um zíper que eu nunca consegui fechar sozinha. Casaco preferido de criança é algo como a abominável "fraldinha" daquelas que são ainda menores: carrega-se para todo lado. Por isso mesmo, é que o dito cujo sempre estava à tira colo, digo: amarrado na cintura, dentro da mochila, no banco do carro e, naquela noite, dentro do porta-malas. O casaco e eu, separados apenas por um banho, um pijama e um pai que havia saído com o carro para ir até o mercado. Bem se diga que peça de roupa era o contrário de uma pantufa: boa para exibir fora de casa. Assim, eu não daria por falta dela até que precisasse novamente combiná-la com alguma tiara de laço e sair. A paz reinava no número 103 do primeiro andar daquele prédio naquela noite de um dia de semana qualquer. Lá fora, um frio de rachar. Ao mais sútil som da chave a girar na porta, corri para saber se dentre as compras estava a tão desejada caixinha de kinder-ovo. Sim, estava, como sempre. Mas a surpresa não se limitaria àquela contida dentro do ovo de chocolate! Após entregá-lo com um sorriso mais sorridente que o de costume e na presença da minha mãe e irmão, é que meu pai, ajoelhado diante de mim, contou: "Agora há pouco, ao sair do mercado, quando estava no estacionamento guardando as compras no porta-malas, uma mãe com uma menina linda, l-i-n-d-i-n-h-a, coisa mais linda, vocês precisavam ver a doçura daquela criança, veio me pedir dinheiro. Naquele frio que estava fazendo, vocês imaginem: aquela mulher desamparada com a menininha nos braços! Eu não sabia o que fazer! Por sorte vi um casaco seu, filhinha, ali, jogado no porta-malas! A menina vestiu na hora, serviu certinho nela, elas ficaram numa felicidade!" Ao ouvir aquilo, explodi num berreiro de raiva e não quis saber de conversa com ninguém naquela noite. O que se ouvia pela casa eram comentários indignados com a manha de uma garota tão mimada que, atenção: importava-se mais com o seu casaco preferido do que com o frio que uma criança, uma criança igualzinha a ela, sentia. Decepção total: estavam criando um monstrinho - e à base de kinder ovo. Será que a ninguém ocorreu pensar que o casaco preferido era o de menos? Imperdoável mesmo foi o "uma menina linda, l-i-n-d-i-n-h-a, coisa mais linda, vocês precisavam de ver a doçura daquela criança"...
Posted on: Wed, 10 Jul 2013 00:21:37 +0000

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