O meu Pai (Voando nas - TopicsExpress



          

O meu Pai (Voando nas asas da imaginação) A história do trabalho e do esforço humano é muito mais interessante e significativa do que a história do homem como indivíduo. Porque os homens morrem sem alcançar sequer cem anos, mas a sua obra sobrevive durante séculos. Maximo Gorki, escritor russo. Nossos pais fazem parte da nossa caminhada. São eles os primeiros a nos transmitirem os valores vitais a nossa formação: o sentido de pertencimento, os mecanismos de sociabilidade, os valores culturais e os princípios éticos, com base nos quais nos relacionamos em sociedade. É por isso que os filhos falarão aos tempos mais longínquos os feitos e ensinamentos dos seus pais: da sua bravura, do trabalho empenhado na obtenção dos meios necessários à subsistência, dos amigos que cultivaram, da persistente busca por uma qualificada formação educacional e cultural dos filhos, das ações de solidariedade que empreenderam, dos sofrimentos, dos prazeres e das alegrias que compartilharam. E é disso que aqui vamos tratar. Inteiramente submetido ao trabalho, faltava ao meu pai saber e tempo para se dedicar a atividades relacionadas à cultura espiritual: a arte, a música, o teatro, a literatura, a poesia, a sociologia e a filosofia. O trabalho incessante pela subsistência material lhe tomava a vida. A palavra lhe chegava pela pregação religiosa, numa ovação e culto a divindade, pois era no espaço da Igreja que se transmitia o sentido e o significado de determinados valores como: o temor, o pecado, o sofrimento e a resignação, o perdão, a piedade, a veneração e a compaixão que tinham o propósito de lhe imprimir uma determinada conduta de vida e abrir caminho para a salvação eterna. A bravura e os feitos pessoais se propagavam através das conversas entre amigos, principalmente, neste caso, na sala da frente da nossa casa, acompanhadas pelo refinado sabor do cafezinho quente, torrado, pisado e servido por minha mãe, “Dona Bina”, sobre a produção, a criação de animais, as festas, as doenças, o casamento, a troca de favores, o empréstimo,... O âmbito da casa, em seu tempo, servia de palco para a preservação de certos costumes e era nele que as relações sociais se reafirmavam, dando sentido a sua vida e reforçando com essa prática o seu humanismo, no sentido renascentista. Sua fortuna material contabilizava-se na moradia, nos poucos animais e na pequena gleba de terra que possuía, além da água escassa a que tinha acesso. A arte que cultivava era a arte do divertimento, da conversa, que segundo Montaigne “é o mais frutuoso e natural exercício do nosso espírito”, da distração e do repouso. Não era por isso estreito de espírito, porém sempre viveu próximo ao seu grupo, em seu próprio espaço. A marca da sua vida foi a ação, o trabalho, o otimismo, a amizade, o sonho e o amor. Viveu em comunhão com sua esposa Sabina Nunes vieira, “Dona Bina”, por ditosos 43 anos, tendo com ela 14 filhos, segundo ele a única mulher que conhecera na intimidade, e ao seu lado tocou os afazeres no campo e os negócios no comércio. Foram agricultores e proprietários de um bar. Companheira decidida, valente, criativa e comunicativa, sendo luz e esteio de suas realizações. Tão próximos e tão identificados que a comunidade de Uiraúna os tratava sem protocolo, Marcelino e Bina ou Bina e Marcelino, não davam margem às diferenças. Suas vidas de companheiros e pais extinguiram, aos olhos dessa comunidade, a hierarquia social estruturada nas relações de gênero. Ela sofreu com a sua partida em 1986, encontrando alento junto a sua família, à religião e aos amigos e amigas. Residindo, hoje, em Natal, ao lado dos filhos, noras, genros, netos, bisnetos e tetranetos, com 91 anos de idade, continua sadia, lúcida e bonita. O trabalho do meu pai na agricultura transpirava prudência e sofrimento, e, ao mesmo tempo, satisfação de si. A satisfação é que tudo podia correr de forma pior, ainda, com a presença da seca e das pragas destruidoras da lavoura, além do baixo preço do algodão, manipulado pelas empresas compradoras e seus representantes, dificultando assim o pagamento dos empréstimos tomados ao Banco do Nordeste ou aos amigos para gerir suas atividades, fato que lhe preocupava. Ele tinha pouco domínio sobre essas realidades. Não recebia, ainda, os benefícios da ciência e das tecnologias que pudessem ajudar a vencer com mais facilidade os obstáculos materiais, melhorando as suas condições de trabalho e de vida. O emprego da rude e improdutiva enxada que lhe deixavam marcas profundas no corpo e o uso do arado puxado à tração animal, que lhe proporcionava poucos resultados, eram os instrumentos predominantes no trato da lavoura. A esse nível tecnológico era maior o esforço para manter e encaminhar de forma satisfatória sua família e dispor de tempo livre para o descanso e para o lazer. Somando-se a essa condição desfavorável, o Estado organizado, uma instituição do mundo moderno, do bem-estar social em outros lugares, populista e ditatorial no Brasil em seu tempo, cujas ações estavam distantes do meu pai. Por isso ele tinha que tocar a vida com seus esforços, sem apoio, sem assistência. Contava, porém, com a solidariedade dos amigos e dos parentes, em momentos significativos, no desempenho das suas tarefas e na concretização dos seus sonhos, da educação dos filhos, por exemplo. Mesmo diante dos limites impostos por essa dura realidade, ele deu liberdade e asas ao espírito adotando um imaginário social poderoso e moderno: a ascensão social dos filhos pelas estradas largas da educação e da cultura. A sociedade inteira de Uiraúna consagrou essa marcante dimensão humana. Para ilustrar esta afirmação vou relatar três fatos substantivos nessa direção. Primeiro, a volta à cidade, em 1961, do hoje promotor de justiça aposentado Dr. Antonio Batista da Silva Neto, recém formado em direito, lembro que a sociedade uiraunense se mobilizou para recebê-lo, a Banda de Música à frente, tocando bonitos dobrados, ovacionando aquele jovem que voltava à sua comunidade consagrado pela conquista de um título acadêmico de nível superior. Foi um cortejo de aplausos e reconhecimento a quem se preparara culturalmente para a vida. A caminhada teve inicio na entrada da cidade, exatamente na cancela do posto fiscal, seguindo até a Rua Nova onde residia o seu irmão Francisco Batista. Em lá chegando o jovem Antônio Batista pronunciou um eloqüente discurso em agradecimento àquela manifestação, símbolo da sensibilidade de um povo que sabia valorizar aqueles que se prepararam profissionalmente para enfrentar o mundo pelos caminhos da educação. O segundo exemplo pode ser percebido quando recebi o destaque de professor por ocasião das comemorações do cinqüentenário da cidade. Essa homenagem ilustra o apreço de uma comunidade a um cidadão que adotou como prática de vida a construção do conhecimento e como missão a formação educacional e cultural da juventude. Esse reconhecimento pode ser extensivo ao meu pai, camponês que viveu dos frutos do trabalho em uma pequena gleba de terra e do comércio de comidas e bebidas, e que imprimiu essa orientação possibilitando não só a mim, mas a todos os seus filhos uma boa formação educacional e profissional. Lembro a alegria expressa em sua face ao subir o anfiteatro do Campus Universitário da Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN, de braços dados com sua filha Maria da Glória Vieira, por ocasião da formatura desta, no ano de 1974. Estes fatos são dignos de apreciação, pois ao mesmo tempo em que a comunidade uiraunense cultuava a sua religião, o seu Deus, investia na formação dos seus membros pelos caminhos da razão, da ciência. Com esse imaginário positivo não remoeu sofrimentos pessoais. Nele não havia tristeza sobre o passado e falta de esperança no futuro e mais, seguindo a canção de Renato Teixeira quando diz que “a vida me cobra despedida”, partiu em 1976 rumo a Natal-RN, indo ao reencontro dos filhos que em grande maioria lá já estudavam e trabalhavam. Participando, a partir daí, mais ativamente das suas lutas, contribuindo com sua múltipla experiência na conquista dos sonhos de ascensão social, gestados por ele mesmo nos desvãos das dificuldades, quando em outro lugar e em outro momento da sua história de vida, a natureza, vez por outra, lhe anunciava em voz comovente o inconcebível: a seca, a falta d’água. Água para os homens, para a lavoura e para os animais. Quanto espírito forte para enfrentar com altivez as conseqüências deste fenômeno e quanta determinação em partir em busca de outra realidade social que lhe possibilitasse construir, com os seus, uma vida melhor, com mais autonomia e alento. Esse foi o homem, profundo “conhecedor” da teoria da complexidade (de Edgar Morin), ousado no enfrentamento dos obstáculos à sua frente. Um herói moderno, competente administrador de adversidades, versátil na gestão dos bens escassos, ao ponto de romper com um mundo sobre o qual detinha pouco controle e construir outra vida possível, mais saudável, em lugares diferentes. Assim foi ele, Marcelino Nivaldo Fernandes: o meu pai. [email protected]
Posted on: Wed, 05 Jun 2013 19:03:50 +0000

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