O Inquilino Do Sótão A curvatura da linha da Vida É, faz tempo... Faz mesmo muito tempo desde a última vez que falámos. Há quantos anos foi, João? 16? 17? Já lhes perdi a conta... Sabes, nunca tive a coragem de te ir visitar. Mas acredita que senti e sinto a falta da tua companhia, das nossas conversas, das loucuras... O que me leva agora a falar contigo é o mesmo que nos aproximou antes... sim, esse sentimento de solidão, o mesmo que nos empurrou um contra o outro, que nos fez conhecer para além das bebedeiras e outros extremos que tinhamos. Sim, João, eu também era um daqueles que antes de conviver contigo, também gozava com as figuras que fazias... e deixa-me dizer-te que tu abusavas... era tudo em extremos... as bebedeiras, as parvoices, o teu look rebelde, o desafio permanente pelo risco... Como eu te percebo agora, João... Sim, chamei-te muita vez parvalhão, puto rico, mimado... Era fácil gozar contigo, apesar do todo o teu tamanho e da tua voz forte. Porque tu eras só mascara, tu não eras aquilo que mostravas. E pagavas por isso. Fazias por pagar por isso. Na altura fazia-me uma certa confusão como podias andar sempre em metido em problemas... como poderias ser assim tão burro! Pois, os burros éramos todos nós...todos aqueles que te usavam para beber à borla (tinhas sempre dinheiro) ou para fumar o charrito que tu tinhas o gosto de exibir em todo o lado. Teus pais nunca conseguiram comunicar contigo, João. Eles tentavam, acredita que tentavam! Mas também lutavam contra os seus fantasmas, com seus próprios medos, e tu não ajudavas nada com a tua atitude. A tua avó (sim, ela sabia), ela conhecia-te por dentro, sabia quem tu eras, o teu intímo. E nunca desistiu de ti. Sabes, uma vez, pouco tempo de comecar a falar mais contigo, tua avó veio ter comigo, pedindo para olhar por ti, para tentar por juízo nessa tua cabeça. Ela já me conhecia e aos meus pais, eu era um pouco mais velho, parecia mais responsável... parecia... Imagina lá se ela nos visse a beber absinto puro... sempre naquele desafio estúpido de ver quem era o mais rebelde, o mais extremado... Mas tu eras o EXTREMO! Fazias tudo para ser notado, para que olhassem para ti. E conseguias ser o centro da atenção, ò se conseguias! E nunca pelos melhores motivos... Sim, teus pais não sabiam mesmo que era por eles que chamavas. Mas como podiam saber, João?! Como?! Se mesmo entre eles não comunicavam! Já te disse que eles estão bem? Teu pai encontrou o caminho e está diferente! Mais magro, sempre sóbrio, e reconquistou a auto-confiança e competência no seu trabalho. Cada vez que o vejo, vejo-te, João. Porque ele é a tua cara chapada, sempre pronto para ajudar (como tu), sempre com aquele sentido de justiça que tu tinhas. Sim, tu sem dares por isso recuperaste teu pai. Ele adora-te, já conversámos sobre ti, já lhe disse que tu não foste um caso perdido, que tinhas um grande coração debaixo dessa rebeldia toda. E ele sabe, João... Ele sabe... Tua mãe continua na mesma, nem parece ter a idade que tem. Alta e altiva, simpatica com todos. Agarra-se a pequenos prazeres, como o jogo. Talvez um dia lhe saias na raspadinha, talvez apenas esteja em guerra com a sorte. Talvez sinta a tua falta. Lembraste das vezes em que conversávamos da vida, da música, dos nossos pais e como eles nos não escutavam? Ou nós a eles... Viviamos para o agora, fechámos bares, partilhámos bebidas, fumos, e gajas... Gajas... Sabes que muitas ainda se lembram de ti? Nem todas queriam só ficar pedradas e curtir, muitas gostaram mesmo de ti, João. Algumas conseguiram ver-te para além do fumo, do sabor a álcool, e do teu cabelo... E essas não te esqueceram, acredita. Apesar da imagem que tu fazias questão de passar, tu não eras aquilo... Não! Eu vi teus esboços a carvão, o cuidado que tinhas com tuas coisas ou com as pessoas que gostavas, a tua frustação por não poderes corrijir as injustiças que víamos. Sim, eras rebelde, mas não eras vazio. Recordas-te daquele fim de semana em que fomos no meu carro para a Figueira da Foz? Meu Deus... Aquilo era um nevoeiro eheheh. Cassete dos Pogues, Fiesta a caminho! Fomos assim, à procura duma tipa que tinhamos conhecido na Queima, num concerto dos Violent Femmes. Eu vi, aquilo foi faísca e explosão. Vocês encaixaram logo. E lá chegámos nós, 2 tolinhos com tenda, à procura da rua, depois da casa, até que acampámos no quintal ao lado ehehe. Grandes malucos! Sabes, João, a vida dá muitas curvas, tem muitas voltas... E ela conseguir virar-te, fez-te seguir a curva ascendente. Não te mudou... até porque tu já tinhas tudo... apenas despertou-te para a o que realmente vale a pena lutar. E foi a partir daí, 2 fulanos num quintal rodeados de caracois por todo o lado a babar a tenda, que vi-te diferente. Tu tinhas algo que valesse a pena ir atrás... estavas apaixonado. Vidrado mesmo. De tal maneira que fomos 2 e viemos 3. E tornei a ficar sózinho outra vez. Felizmente não demorou muito até alguém me retirar também do vazio, e passe a perceber melhor a razão da tua metamorfose. É.. tudo muda quando temos um objectivo, algo para conquistar. E ela mudou-te. Mas não fui o único a reparar. Bem pelo contrário! Todos comentavam que tu estavas diferente, que até tinhas entrado para a escola de sargentos! "Escola de sargentos? o João?!" Pois, nem eu acreditei. E depois encontramo-nos por acaso, naquele bar onde costumavamos ir, lá naquela aldeia que não me lembra agora o nome... Tu sabes! Estavas tu e a piquena, que ia no dia seguinte para a viagem de finalistas. E claro, vocês andavam colados, tinhas que a levar até ao autocarro. Tinhas que te despedir dela, não podias ir, tinhas o curso de sargentos... Por esta altura teus pais tinham recuperado a confiança em ti, e já andavas com um dos carros deles. Senti-me feliz por ti na altura. Acredita que sim. Porque tu merecias, tu eras boa pessoa. Mas sabes João? A vida dá muitas curvas... E dolorosamente irónicas... Nunca temos nada por garantido... nunca! A tua namorada foi para Marbella... tu partiste num Marbella, numa curva ao sair da ponte. E parte de mim foi contigo. youtu.be/ifO7AwBtNjE
Posted on: Fri, 21 Jun 2013 17:35:02 +0000
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