Retalho de uma longa viagem Comboio entre Salónica e Belgrado, - TopicsExpress



          

Retalho de uma longa viagem Comboio entre Salónica e Belgrado, 10 de Junho de 2010. O comboio arrancava às cinco e entrei um quarto de hora antes. As cabines estavam uma autêntica sauna. Ao iniciarmos a viagem, o barulho com que o velho trem circulava, era ainda mais desagradável do que a temperatura. Estas locomotivas oferecidas pelos caminhos-de-ferro franceses, devem ser do tempo do Luís XV e atendendo à higiene do interior, não são limpas desde essa época. Só que a magia dos Balcãs está na forma como ocupa os nossos sentidos com outros assuntos, levando o viajante a esquecer comodidades supérfluas. Chegados à Alfândega Grega, começaram os acontecimentos dignos de registo, todos eles com um personagem principal e vários actores secundários, entre os quais me incluo…vamos passar aos factos: O guarda fronteiriço grego, era uma figura imponente mas bastante simpática. Recolheu os passaportes das almas que não eram da UE e depois de os verificar, chamou pelos donos no exterior. Todos compareceram rapidamente à chamada… menos um. Quando o guarda gritou Bogdanovic (não sei se é assim que se escreve), ninguém se acusou. - Bogdanovic!!!..... Bogdanovic!!!...... e nada. Eu observava da janela e presumi que o tal Bogdanovic era o sujeito que telefonava numa cabine a cinquenta metros do lugar da chamada. O tal individuo tinha estado à minha frente na fila da bilheteira… deve ter quarenta e muitos e tem ar de quem os viveu. Calçava umas botas pretas e umas meias grossas (mesmo adequadas à temperatura que fazia) e vestia uns calções também pretos e uma camisola branca, sobre o seu metro e noventa de altura. Era careca e cabeludo (tal qual o vocalista dos UHF) e tinha feições típicas de um eslavo do sul. Quando virou os olhos para o comboio e reparou nos vinte e tal passageiros que para ele olhavam, lá se virou para a direita reparando no guarda… fez um sinal para o mesmo e ficou ao telefone pelo menos mais três minutos… depois lá se dirigiu à chamada sem grandes pressas, perante a boa vontade de todos os presentes. Essa é das maiores riquezas dos Balcãs, ninguém tem pressas para nada… e quem as tem depressa as perde. Mais uns minutos e chegámos à Alfandega Macedónia, onde permanecemos pelo menos meia hora numa estação semi-abandonada. Quando o funcionário suou o apito, um dos canadianos da cabine contígua à minha, lembrou que faltava o Bogdanovic, e que a sua mala ainda permanecia no vagão… o que além de ser muito bem observado, me fez constatar que eu já não era o único que estava preso a este personagem. Lá apareceu calmamente o nosso herói, acompanhado de duas sacas de cervejas que foi desencantar sabe-se lá onde. Acenou para todos, que debruçados na janela, esperávamos por aquele descontraído ser humano, que estava tão feliz com as suas cervejas como um menino com um novo brinquedo… e lá abancou a três cabines de mim. Entretanto, à minha frente, tinha-se sentado um alemão (só de meias e calções) com um ar simpático. Era bastante pesado e estava literalmente a derreter com o calor. Tenha vindo carregar o portátil na única tomada do vagão que ficava justamente em frente da minha porta. Falamos de vários assuntos que a ambos interessavam. O mote, claro está, foi o status quo balcânico. Quando lhe disse que poderíamos ter o mesmo problema na península ibérica, caso não tivéssemos corrido injustamente com os judeus e muçulmanos séculos atrás, ele não concordou e introduziu-me o conceito de memória colectiva, sobre o qual ainda não me tinha debruçado. Para além dos problemas étnicos e religiosos, a ausência de memória colectiva é talvez um dos principais problemas desta complicada e excitante região. Os balcânicos nunca conseguiram olhar para uma bandeira que fosse comum a todos, a não ser quando obrigados a isso. Klaus nasceu em Berlim antes da queda do muro, e logo o bombardeei com perguntas que me despertavam curiosidade. Ele foi respondendo com um perceptível conhecimento. De repente, paramos num lugar sem estação, onde esperavam umas doze pessoas assim para o aciganado. Ainda pensei que tivessem pedido boleia ao comboio, o que aqui nos Balcãs não seria assim tão improvável, mas depois deduzi que este seja uma espécie de negócio paralelo, pois pagaram directamente a um homem, que apesar de não estar fardado, era evidente que mandava no nosso comboio. Curioso foi um indivíduo entrar com um frigorífico, que introduziu no vagão com a ajuda de quem estava por perto. Não sei se o tinha comprado, roubado ou se apenas estava de mudanças, mas isso também nada interessa … lá prosseguimos viagem. Dez minutos bastaram para o camarada Bogdanovic aparecer a empurrar a nova aquisição da carruagem do nosso humilde vagão. Com o espírito comunitário que ainda subsiste por estes lados, requisitou o frigorífico para refrescar as bebidas do povo (esta teoria já sou eu a delirar). Desligou-se o portátil do alemão, e introduziu-se aquele iceberg na cabine (com mais porrada que delicadeza). O corredor ficou liberto, mas o nosso compartimento intransitável, obrigando um germânico com o peso dum novilho, a fazer contorcionismo cada vez que queria sair. As cervejas do Bogdanovic obviamente já lá estavam antes da mudança… e passados alguns minutos, quase todos os elementos do vagão tinham lá colocado qualquer coisa… até as refeições de uma oriental lá tiveram o seu espaço. A partir desse momento, a algazarra tornou-se rainha e nomeou Bogdanovic como regente-mor do vagão. Muito mais que um aparelho para arrefecer bebidas, o frigorífico tornou-se num elo de ligação entre gregos, macedónios, albaneses, sérvios, canadianos, orientais, ciganos, um alemão e um português… que nunca mais deixaram de comunicar mesmo não havendo um idioma comum a todos os elementos. Foi com mágoa que em Skopje reparei que era o único que não seguiria até Belgrado. Fiquei desolado por perder as seguintes oito horas, que pela noite dentro devem ter sido bem animadas… não sei o que teria ganho mas sei o que tinha perdido. Skopje é uma cidade muito interessante e falarei sobre ela um destes dias. No coração fica a história de um curioso personagem chamado Bogdanovic, que fez dum frigorífico varinha mágica, e transformou numa festa uma interminável viagem de comboio.
Posted on: Sun, 28 Jul 2013 14:59:32 +0000

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