X – No início – continuou o Profeta – é pela fé que se - TopicsExpress



          

X – No início – continuou o Profeta – é pela fé que se vai até Deus? Acreditar ou a fé é como que um processo de iniciação universal para todos os seres humanos para o encontro com Deus? – Eu chamaria de uma necessidade espiritual universal. Juntamente com a fé, ou com o fenómeno ou acto de acreditar, exercido por todos os seres humanos, Deus já está a conceder o princípio de tudo. Isto se se entender a fé como o início ou o fundamento do melhor da liberdade numa, chamemos-lhe assim, sociedade espiritual, ou o princípio de um caminho para a vivência de algo como, enfim, (dentro das possibilidades das criaturas) sentimento de liberdade absoluta no futuro, na qual a fé é o início, a primeira porta a ser cruzada. Com aquilo que poderia causar (ou já causa) maior escândalo – (resumidamente) o facto de Deus existir mas ser invisível e daí que, posto isso, têm-se que, num primeiro momento, ter fé na Sua existência como um início de relacionamento com Ele – isso revela-se não como um capricho de Deus (isto é, o facto de se ter que ter fé), ou como uma prova de admissão à Sua Presença, mas já os primeiros frutos da liberdade e do amor de Deus para connosco que já nos estão sendo concedidos e que somente nos podem ser concedidos através da fé. Condição espiritual/consciência/liberdade sem fé é como jogar futebol sem a bola. Uma exigência primária da natureza espiritual ou consciente. Uma exigência, assim parece, do ser-livre e consciente. A madrugada de Deus, chamemos-lhe assim. Em sentido lato, o Espírito Santo na nossa alma. Como quem diz, enviar a oração para o lugar correcto. – Concordo – disse o Profeta. – Por que é que alguém tem que acreditar em Deus? Será um capricho gratuito de Deus? A fé parece-me ser mais, como o senhor disse, como uma inevitabilidade da condição espiritual, na qual os seres humanos e os Anjos participam. Será pelos contornos ou a soma da sua existência que o ser humano se perpetuará na Vida Eterna. Como se a sua vida representada/resumida simbolicamente numa pintura ou qualquer coisa assim. E essa existência não é sinónima de impossibilidade de se ser capaz de ter uma existência numa qualquer manifestação física aproximada ou não daquela que se experiencia nesta vida, seja lá por que extensão de tempo, e seja lá o que essa «matéria» espiritual possa ser, mas reflectindo, acima de tudo, a essencialidade do seu ser. É como a justiça das circunstâncias do nascimento neste mundo. – Como assim? – perguntou o Estrangeiro. – Em sentido lato, que culpa é que alguém tem de ter nascido neste mundo nas condições em que nasceu? – Precisamente – respondeu o Profeta. – Como eu entendo, relativamente ao que os seres humanos se tornarão na eternidade, a todos neste mundo é dado como que o mesmo jogo ou as mesmas armas para jogá-lo: a condição humana. Posto isto, não é aquilo que se tem que conta, mas aquilo que se faz com aquilo que se tem. Daí a justiça de como as coisas serão na eternidade, o facto de alguém se tornar naquilo que se tornará na eternidade, o quão grande alguém será entre os seus pares – no sentido de proximidade a Deus - surge da conformidade daquilo que se fez nesta vida. Fogo a crepitar. – Os Gregos – continuou o Profeta –, quando estávamos sob o seu domínio, deixaram-nos algumas histórias acerca de um sistema de organização social que eles encontraram num lado longínquo do seu Império. Eles falaram-nos desse sistema social religioso ou filosófico de castas – (resumidamente) grupos de pessoas socialmente diferenciadas entre si no que concerne a estatuto religioso, nobreza, trabalhos e deveres sociais, mais ou menos dignos, numa perspectiva mundana. Mas a crença que eles têm acerca do porquê de eles nascerem nas suas presentes condições sociais, nesta ou naquela casta, é atribuída ao quão bem eles se portaram na sua vida passada. Assim, se se nasceu numa casta social menos digna – outra vez, numa perspectiva mundana –, é porque se agiu menos bem na vida anterior e, por causa disso, está-se como que a fazer penitência ou reparação dos pecados passados com a sua pouca sorte na vida presente, no respeitante ao lugar de nascimento de casta. – Parece-me uma interpretação política engenhosa ou astuciosa do mundo – disse o Estrangeiro. – Acima de tudo, parece-me um uso de uma mundividência ou interpretação religiosa do mundo ou da vida que visa o estabelecimento de paz social. Qualquer coisa como: se está nessa condição (pouco afortunada) é porque agiu mal na vida passada. Então, (por a culpa ser somente sua) viva com isso… E não procure mudar a sua sorte agindo mal ou maldosamente porque, se assim o fizer, da próxima vez poderá nascer numa condição ainda pior… »Mas, verdade seja dita, em sentido lato, a busca de uma vida virtuosa, no caminho da paz e da compaixão, também é encorajado. (Em sentido lato, já que não é homogénea) nessa filosofia, a vida presente – que é entendida como reincarnação – almeja a perfeição espiritual, na qual se chega através da prática da paz e da compaixão para com a vida ou o mundo; uma intensa devoção a uma divindade pessoal ou impessoal (um ideal, por exemplo); e outras coisas que agora não me recordo. Mas dá para ter uma ideia. Em teoria, e segundo essas filosofias, quando se alcança essa perfeição espiritual, um estado espiritual denominado de moksha é atingido, que pode ser entendido como a libertação do ciclo de reincarnações: meltdown in cool divinity, Deus seja louvado… Outra vez: porque é que os seres humanos têm de acreditar? O que é isso: acreditar? O que é que isso lhe diz? – Bem, qualquer coisa como a aceitação que alguém faz de algo que tem como verdadeiro, mas que ainda não verificou; ou que aguarda verificação desse algo (que já tem como verdade) no futuro. Ou, melhor dizendo, não teme o resultado futuro de aquilo que ele ou ela têm já presentemente como verdade (mas ainda sem verificação). – Sim – continuou o Estrangeiro. – É um modo de contemplar esse fenómeno. Mas não acha que o acto de acreditar é global e indispensável ao ser humano, ainda que religiosamente descontextualizado? Ou terá alguém a capacidade de confirmar toda a informação que lhe chega? – Não – respondeu o Profeta. – Os seres humanos não têm como confirmar toda a informação que lhes chega. Eles vivem inevitavelmente daquilo que acreditam ser verdade. Acreditar é uma parte inalienável da condição humana. XI – A existência de Deus é uma coisa lógica para a razão humana? – perguntou a Cristã. – Ao longo da História da Igreja surgiram argumentos acerca da prova da existência de Deus, como os de Santo Anselmo e São Tomás d’Aquino. Santo Anselmo disse que se a existência de Deus é concebível/pensável para o ser humano, como o é, sendo Deus, então, o máximo que se pode pensar/conceber, esse mesmo conceito/pensamento, para ser o máximo pensável possível, tem que existir necessariamente para além do pensamento, tem que existir também no exterior da mente, senão já não seria o máximo pensável possível porque seria somente um conceito. Assim sendo, Deus tem que existir necessariamente. »Os argumentos de São Tomás d’Aquino andam à volta sobretudo da necessidade de ter de haver uma causa suprema e original que seja a sua própria causa, isto é, é necessário que Deus exista, enquanto Causa Primeira, porque não se pode regredir até ao infinito para se achar uma causa para, por exemplo, o movimento, sabendo-se que tudo o que tem movimento tem a causa do seu movimento em algo exterior, sendo então necessário haver algo que tenha em si mesmo a causa do seu próprio movimento e que seja a causa de todos os outros; para as causas eficientes, isto é, verificando-se como se verifica que tudo o que existe encaminha-se para uma determinada finalidade mediante outras causas intermédias, existindo então a necessidade de haver algo que seja ou tenha em si mesmo a sua própria finalidade; para o bem ou graus de perfeição das coisas, constatando-se como se constata que em todas as coisas existem variados graus de perfeição/belo/bem, havendo então necessidade de haver algo que seja a causa de perfeição e bem, sendo então esse algo a perfeição e bem supremos; para existência (propriamente dita), isto é, o possível existe por necessidade de outra coisa exterior e anterior a esse possível, por isso tem de haver algo existente que tenha a causa da necessidade da sua existência em si próprio e não em algo exterior e anterior a si; e também por causa do governo das coisas desprovidas de inteligência, as quais se constata que são governadas para um determinado fim (ainda que desprovidas de inteligência), tendo então de existir necessariamente uma inteligência superior que as governa, sendo essa inteligência, e todas as outras causas, Deus. O Sacerdote bebeu um pouco de água. E continuou: – Comportamento virtuoso, isto é, fazer o bem ou ser bondoso, sem a existência de Deus, o julgamento das almas e a vida eterna, não faz nenhum sentido. Se Deus não existisse, nem o julgamento das almas nem a Vida Eterna, o que faz verdadeiramente sentido – se não nos queremos enganar a nós próprios e queremos encarar este assunto com seriedade, ser sérios acerca desta vida e deste mundo – mas se Deus não existisse, o que faria sentido seria a hipocrisia. »Mas dado que a compaixão é algo que existe inegavelmente no ser humano, mesmo se não levada a cabo (no sentido de a possibilidade de assim agir existir inegavelmente nos seres humanos), somente isto parece surgir como um forte indício da existência das três coisas que se mencionaram: Deus, o julgamento das almas e a Vida Eterna. E todos aqueles que negam a existência de Deus, mas ainda assim fazem apologia de algum comportamento moral tendo em vista a compaixão etc., só estão a afirmar, ainda que inconscientemente, que Deus existe verdadeiramente, tem de existir – ou isto ou estão a ser hipócritas propositadamente, isto é, anunciam e fazem apologética de um comportamento moral bom, mas sabem que no fundo o que conta é a lei do mais forte, ou da selva. – E o que dizer acerca das religiões ou filosofias que pregam a reincarnação e compaixão? – perguntou a Cristã. – Como já foi demonstrado, sem a existência de Deus, o julgamento das almas e a Vida Eterna, isso não faz sentido nenhum, isto é, o de ser uma boa pessoa, o de ser compassivo. É somente uma outra fantasia que os seres humanos inventam para se sentiram melhor acerca do mundo ou deles próprios ou seja lá o que for. Mas, encarando este assunto com seriedade, tendo como fundamento os dados que o contexto desta vida e deste mundo nos fornecem, sem querer inventar uma realidade, não importando o quão bela possa ser, só se pode concordar com o que já se disse: se Deus não existisse, nem a Vida Eterna, nem o julgamento das almas, todo o mal que eu pudesse fazer seria inconsequente, completamente irrelevante (desde que não fosse apanhado a fazê-lo por causa das leis dos homens). E toda essa conversa de fazer o bem por causa da recompensa no coração, para se sentir melhor acerca de mim próprio ou qualquer coisa nessa área… por favor, poupem-me. »Por exemplo: se eu, caminhando pela rua, passar por um pedinte e lhe roubar seja lá aquilo que ele lá tiver, e se ninguém souber disso, o resultado é o mesmo – dado que Deus não existe nem o julgamento da alma. Pelo contrário, poder-se-ia dizer que até agi com sabedoria, porque estou a servir-me a mim próprio, resumindo-se então a questão do bem e do mal à satisfação de todos e quaisquer caprichos e/ou necessidades (reais ou aparentes) do indivíduo. Se Deus, o julgamento das almas e a Vida Eterna não existissem, se queremos ser sérios acerca disto, isso parece ser então como os seres humanos se deveriam comportar, pior do que os animais – já que os animais se preocupam pelos seus. E, se Deus não existisse, por lógica, de modo a ser o mais feliz possível (no sentido de servir quaisquer necessidades ou sentimentos ou seja lá o que for que surja na minha cabeça), só posso estar concentrado nos meus próprios interesses, apesar de seja lá quem for, de modo a obter a máxima quantidade de prazer e de felicidade e facilidades possíveis. Então, com este argumento, também se está a demonstrar que os demónios existem. Almas perdidas ou anjos condenados. Já condenados. Que podem agir através dos seres humanos, seja por sugestão ou possessão. Por que os seres humanos podem de facto agir pior do que os animais. Então, se Deus não existisse, os sociopatas seriam aqueles que sempre estiveram certos – ou pelo menos aqueles que não se deixaram apanhar. Isso de religiões ou filosofias que negam a existência de Deus e/ou o julgamento das almas (depois da morte) e a Vida Eterna, e que defendem doutrinas de reincarnação da alma e de fazer o bem ao próximo, essa mesmas filosofias e religiões são somente fantasias e drogas intelectuais. E nem sei o que dizer no respeitante aos ateus e agnósticos… E isto, é favor notar, surge da lógica. »Agora, se eu não acreditasse em Deus, obviamente que não diria isto a ninguém. Entraria no fluxo ou no mesmo jogo dessa fantasia: temos de ser «moralmente virtuosos…» e «fazer o bem…» e «ajudar…», e toda essa visão ingénua e romântica que só serve para livros (de ficção, por assim dizer) e para servir a própria vaidade dos autores – no caso de estarem a querer ser sérios e não escreverem sob ficção. Mas como foi dito: se Deus não existisse, e num mundo que apesar de negar a existência de Deus ainda tenta conduzir o ser humano a um comportamento pacífico e compassivo ou justo, menos, a coisa lógica a fazer (de modo a se obter a máxima quantidade de prazer, no sentido de iluminação «espiritual») é ser um hipócrita sociopata – se Deus não existisse, nem a Vida Eterna, nem o julgamento das almas depois da morte, vale tudo, por que todo o mal que eu possa fazer é perfeitamente inconsequente, desde que não seja apanhado. Ou é desta forma ou então abandonar-se a uma ilusão romântica, fantasista e esquizofrénica do mundo (que não acredita em Deus, mas que ainda assim diz que é melhor se fizermos o bem). Mas, enfim, quem quer ver a vida tal como ela realmente é, como ela se apresenta, só pode concordar com o que aqui se disse: se Deus não existisse, então (neste mundo) hipocrisia sociopata equivaleria a iluminação espiritual. Mas dado que fazer o bem ou comportamento moralmente virtuoso é algo que não é estranho ao ser humano (ainda que somente em teoria), mas facilmente possível de conceber e acessível um seu cumprimento, e obviamente recomendado por todos, isso, por si só, parece surgir como prova natural e inegável da existência de Deus, do julgamento das almas e da Vida Eterna. XII – Um dos assuntos que os filósofos reflectiram, e reflectem, foi o do Ser – continuou o Estrangeiro. – Em referência à existência, à existência contra-posta à não-existência, à totalidade da existência, aquilo que é, que existe, com ou sem vida. Segundo tradição filosófica, têm-se procurado também arranjar um conceito para dizer o que o Ser é, e, segundo essa mesma tradição, isso mesmo tem-se revelado, pelo menos, difícil, por isso se costuma dizer que o Ser não pode ser dito, porque não se conseguiu ainda arranjar um conceito (particular) que reflicta o seu universal, como de árvore – que não precisa ser nenhuma árvore em particular, mas que simplesmente dizendo que está ali uma árvore, o receptor dessa mensagem fica já uma ideia específica, ou pelo menos já muito boa, acerca daquilo a que o emissor se refere. Se dissermos que deixámos qualquer coisa na casa da árvore, o receptor da nossa mensagem não vai à procura dessa mesma coisa no celeiro ou na adega – a não ser que não saiba o que é uma árvore, mas isso são excepções irrelevantes para o que se procura expor aqui. »Estamos rodeados de Ser – perspectivado ainda num sentido mundano do termo, ainda não teológico. Habitamos nele e fazemos parte dele. Parece ser como que um movimento sobre o qual não se consegue captar uma imagem. Como a nossa própria face: sabemos que temos uma, mas não a conseguimos ver – a não ser se reflectida em alguma coisa. Mas aparte disso. Suponhamos que não existe nada em que reflectir. O Ser, na generalidade ou totalidade da Realidade, à primeira vista, parece ser uma coisa abstracta (no sentido artístico do termo). Já que no sentido tomista ou escolástico… – Tomista…? Escolástico…? – indagou o Profeta. – Já vai perceber. Mas no sentido tomista ou escolástico, o Ser (ainda) não pode ser abstracto – sendo precisamente essa a razão (o facto de o Ser não poder ser abstracto) porque (se diz que) não se pode dizer o Ser ou o que ele é, ou seja, (no sentido escolástico do termo, o Ser não pode ser abstracto porque) não se pode extrair nada do seu concreto, isto é, não se pode extrair um seu particular que represente/conceptualize o seu universal. Parece ainda não existir um conceito que lhe seja apropriado. Ainda não se antevê um conjunto de características particulares que reflictam o seu universal. Como de árvore, ao qual se pode imaginar, grosso modo, como que um cilindro de madeira saído da terra, com ramos e folhas. Pode ser qualquer árvore, sem especificar qual, e que se entende o seu conceito de alguma maneira, isto é, entende-se o género árvore, sendo a sua especificidade (figueira ou qualquer outra) irrelevante para se saber já do que se trata. Mas o mesmo parece que não se pode fazer ainda para o Ser, representá-lo no seu género. Ao procurar fazê-lo, parece que se vai para termos como universo ou mundo ou qualquer outra palavra que parece exprimir a totalidade da Realidade. Parece que, da sua inefabilidade, se passa directamente para qualquer uma das suas especificidades. A não ser que se diga universo ou mundo. Mas isso parece não se adequar bem ao conceito que se procura, ao grande Género de Ser (em oposição ao não-Ser), através do qual todas as suas especificidades sejam compreendidas ou aceites. Pode-se, ainda, pensar em vida, mas vida parece estar mais para aquilo que, para além de existir, contém ainda vida em si, como uma planta ou um animal, em vez de uma pedra que, apesar de existir, é inanimada. »O Ser parece ser ainda passageiro, temporário – continuou o Estrangeiro. – Ou, pelo menos, parece ser esse o modo da nossa participação nele ou neste mundo/contexto, dada a evidência da morte do ser humano. Mas tudo o que existe nele também parece dizer acerca do seu carácter temporário, seja por muito ou por pouco tempo. Como as estrelas que, comparativamente à duração da vida humana, duram muito mais, mas também acabam por desaparecer. Por isso, o Ser, enquanto globalidade de todas as coisas existentes ou totalidade da Realidade, e ainda sem perspectivá-lo teologicamente, parece ser sobretudo temporário, pelo menos neste contexto humano e para o ser humano. »Mas o tempo, em si mesmo, parece não existir, mas ser somente uma percepção paradoxal. Como uma faculdade ou ferramenta de entendimento humano, como mais um dos elementos para que o «truque» da consciência (humana) aconteça. Não que seja somente isso, mas também isso, e, também, não que seja sobretudo isso. Uma pessoa satisfeita e distraída parece que não se apercebe do tempo (a passar). Enfim, parece que ninguém se apercebe verdadeiramente do tempo a passar. O que parece que se chama a isso é não o sentimento/percepção do tempo a passar, mas a consciência ou o assentimento indubitável de que o tempo existe e passa e que, portanto, está a passar, apesar de não se dar conta disso em sentimento ou percepção. Como a rotação da terra, a qual sabemos que gira, mas não se percepciona ou sente – a não ser se contemplando pontualmente, por exemplo, o sol no horizonte. A certeza da finitude que o ser humano tem acerca de si próprio é que parece que dá essa fé, enfim, confirmada, de que verdadeiramente o tempo está a passar, e não por se sentir ou percepcionar de que realmente o tempo está a passar ininterruptamente. O facto de que o tempo existe e que passa constantemente parece ser mais uma evidência do espírito humano do que proveniente de uma comprovação empírica. Parece ser o tempo como algo aquém ou para além do alcance dos sentidos humanos, isto é, na sua actualidade constante, mas que a consciência, através dos dados que recebe pela evidência da história e dos seus semelhantes, lhe diz que verdadeiramente o tempo está a passar, «embora tu, corpo», poderia a alma dizer, «o não possas sentir na sua actualidade ininterrupta». »Assim, parece que o espírito humano, entendido aqui como consciência, parece ser feito de eternidade, porque não se apercebe do tempo, nem consegue conceptualiza-lo, nem sabe o que isso é (porque o espírito ou a alma é feita de eternidade), apesar de saber que o tempo existe verdadeiramente, consciente que está o ser humano do seu contexto de finitude. Parece ser o tempo como que uma percepção paradoxal do espírito: paradoxal porque não o percepciona, mas sabe que existe. Pode até se dizer que o percepciona esporadicamente, pelo envelhecimento, por exemplo, ou como aquela imagem do Sol no horizonte. – Então, poder-se-ia perguntar agora, o que é que poderá ser adequado para o conceito de Ser? – perguntou o Profeta. – Talvez a figura humana, pela sua excelência comparativamente a tudo o que se encontra neste mundo. A figura humana, pelo seu aspecto, pela sua ergonomia exterior e modo de existir comparativamente às outras criaturas ou a todo o resto da Criação. Assim, poder-se-á supor, num primeiro momento, que o Ser é uma figura humana ou um casal – mas, visto assim, este primeiro conceito de Ser parece ir «contra» Deus, que se sobrepõe a tudo o resto, que é inimaginável, sobre o qual uma imagem ou conceito que O traduza ou represente justa ou apropriadamente ainda não parece se vislumbrar. E, a figura ou casal humano, ainda que, do ponto de vista humano, seja a mais excelente das figuras, parece, contudo, não fazer justiça aquilo que se procura traduzir como sendo o Ser ou, (já) neste caso, Deus ou o Seu Poder. É uma expressão do mesmo, e do ponto de vista humano, o mais excelente e belo, mas parece não ser ainda aquilo que melhor O traduza e represente. Assim, o Ser, ou um seu conceito, será uma abstracção, no sentido escolástico do termo, isto é, uma particularidade ou um conjunto de particularidades representativas e/ou substanciais do seu Género, uma imagem ou conceito que resuma proporcionalmente e diga «tudo» acerca do Poder de Deus. – Um conceito para o Poder de Deus? Mas como é que se pode arranjar um conceito para algo tão indizível e inimaginável? – perguntou o Profeta. – Já que, enfim, «para cima», Deus, expondo/manifestando a Sua Glória, o Seu Poder, parece que acabará sozinho – já que nada nem ninguém o iguala em poder nem em capacidade de O acompanhar nessa «subida», por assim dizer – só Lhe parece restar, supõe-se, o caminho inverso, «para baixo», isto é, a expressão do Seu Poder/Glória na humildade – já aqui, a humildade parece não ser pouca, isto é, «somente» por Deus incarnar. (E, aqui, a expressão do Seu Poder na humildade, não quer dizer que o inverso seja vaidade ou soberba.) Mas, assim sendo, a expressão ou conceito de Ser/Poder de Deus, justo e apropriado, de modo que possa ser traduzível em conceito, é uma morte de Deus… – …? – … a expressão máxima do Ser (visto como sendo o Poder de Deus) e a Sua justa abstracção (no sentido escolástico do termo). E esse conceito máximo de Ser só «resulta» se a Pessoa que morre for Divina. Mesmo que fosse uma Pessoa muito santa, parece que esse conceito já não seria apropriado caso essa Pessoa não fosse Divina. Mas, sendo Divina, então essa Pessoa que morre dá outro significado à Sua morte e aquilo que ela representa. – … Morte de Deus? – suspirou o Profeta, ainda meio sem saber o que dizer. – Enfim, deixe-me só fazer esta observação antes que me esqueça: um conceito, por mais apropriado que possa parecer, não passa simplesmente de um conceito. Como é que isso pode ser considerado justo ou apropriado para traduzir uma grandeza tão inimaginável? – Sendo um conceito que, além de conceito, seja também de natureza sacramental, isto é, que é mais do que um símbolo, realizando verdadeiramente aquilo que significa. XIII – O simbolismo do coração tem mudado ao longo dos tempos, mas, de uma maneira ou de outra, tem sido sempre entendido como um centro ou uma centralidade conselheira ou executiva do ser humano. Nos dias de hoje, o coração é geralmente entendido como o lugar da afeição ou do amor. Também é considerado como um símbolo da inteireza ou totalidade da pessoa, de fonte de coragem ou a ter algo presente no coração ou a tê-lo (naturalmente) actualizado ou vivo na pessoa, do que se pode entender, por exemplo, da expressão knowing by heart, saber de cor. – E associado com compaixão ou generosidade quando se diz have a heart – acrescentou a Cristã. – Também. O assentimento que o coração, entendido simbolicamente, tem intrinsecamente uma natureza boa, já pode ser vislumbrado em alguns elementos de outras culturas antes do seu contacto com a Revelação Cristã, como, por exemplo, se é lícito interpretar deste modo, a Ânfora ou Caixa de Pandora, entendida como uma metáfora ou uma imagem figurada do coração, que, depois de ter deixado sair todo o mal, conseguiu manter a esperança lá dentro. Outras culturas até desenvolveram qualquer coisa como um sistema religioso ou filosófico que almejava a obtenção de uma ligação específica a ser feita com o coração, também simbolizado como o órgão da bondade. »Um mito de criação partilhado pelos povos sucessivos da América Central, talvez não ainda delineado especificamente com os olmecas e os toltecas, mas já certamente com os maias e os astecas, partilhando todos ou tendo todos a sua origem no que usualmente se designa de cultura nahuatl, é a de um deus que se sacrificou a si próprio de modo a que o mundo ou a época contemporânea pudesse surgir, ou para que o mundo não acabasse, ou ainda para que o fogo do Sol não se extinguisse. Desse mito da criação, como origem ou não, foi construída uma filosofia prática, por assim dizer, de modo que os seus praticantes obtivessem um melhoramento de si próprios, ou pelo menos um caminho de interioridade era ensinado a ser percorrido de modo a se alcançar um estado de ser onde a hipocrisia e intenções enganadoras fossem erradicadas, um estado de pureza, se quiser. »Os nativos da cultura nahua, através das suas expressões nos seus povos sucessivos e/ou civilizações, naturalmente que entendiam que uma pessoa nasce tanto com uma face ou cara como com um coração. Mas eles entendiam, baseados no mito ou não, que uma conexão mais profunda deveria ser estabelecida com o coração, de modo que, quando essa ligação acontecesse, o coração brilharia ou far-se-ia verdadeiramente presente na face da pessoa. Yollotl é entendido como significando coração na língua nahua. Esse processo de melhoramento pessoal era denominado com a expressão ixtli in yollotl, ixtli significando face ou cara, então qualquer coisa como tendo o coração (disposto) na face ou somente face do coração ou coração na face. Quando se entendia que esse processo estava concluído, o coração tomava então um novo nome, Yoltéotl, das palavras yollotl e téotl, deus, então algo como coração deificado ou coração do deus. Acredita-se que a determinada altura do calendário nativo, um jovem seria preparado ao longo do ano de modo a obter esse Yoltéotl para depois ser sacrificado para que o seu coração fosse oferecido à divindade ou aos deuses, qualquer coisa ou exactamente como no mito. Não se sabe, no entanto, se essa prática teria sido original, isto é, se começou como um ensinamento dado às pessoas para o melhoramento de alguns ou da população em geral, sem o sacrifício humano, ou se já era originariamente um primeiro passo rumo ao que gradualmente degenerou no que os espanhóis encontraram na civilização Asteca, em finais do século XV ou princípio ou meados do século XVI, quando essa filosofia religiosa primordial já tinha caído num entendimento literal do mito, ou de uma sua versão, mas esquecendo já completamente esse melhoramento pessoal que se procurava, e em vez de um único sacrifício por ano, caso assim fosse, foi tomado como justificação para a Guerra das Flores ou das Rosas – aquela levada a cabo pelos astecas de modo a obter vítimas sacrificiais entre os povos ou populações circundantes. O Sacerdote bebeu um pouco de água. E continuou: – Já no Antigo Egipto o coração desempenhou um papel simbólico. A dada altura na sua História, enquanto as suas crenças religiosas se desenvolviam, combinavam diferentes elementos e sedentarizavam-se numa espécie de sistema, os antigos egípcios acreditavam que a alma dos mortos, a determinada altura na sua viagem na vida depois da morte, encontraria um tribunal onde a alma seria julgada de acordo com as suas acções enquanto viveu na Terra, de acordo com Maet ou Ma’at, uma palavra e/ou conceito egípcio que pode ser entendido como verdade ou ordem (divina). De acordo com a crença egípcia antiga, depois de algumas peripécias no submundo, a alma chegaria a sala das Duas Verdades ou Dupla Justiça, onde seria então julgada e admitida ou não a uma vida eterna abençoada ou ressurreição. A relevância acerca do simbolismo do coração que estou a procurar demonstrar aqui diz respeito aos procedimentos que se davam nesse tribunal: a alma, quando chegava ou já nessa sala, faria então o que é usualmente designado de confissão negativa: a alma diria aos quarenta e tal juízes que lá estavam nesse tribunal que ele ou ela, durante as suas vidas terrenas, não tinham roubado nem matado nem feito nada que fosse contra Ma’at, a ordem divina. Depois desta confissão negativa, o coração do defunto ou alma seria então colocado num prato de uma balança enquanto no outro prato seria colocada uma pena de avestruz, um símbolo de Ma’at. Ao que julgo saber, não é consensual o conhecimento de que se o coração pesasse mais ou menos então saber-se-ia se a confissão negativa tinha sido verdadeira ou não (mas, aqui, isso é irrelevante). Mas, ao que se acredita, se o coração tivesse um peso igual ao da pena de Ma’at, então saber-se-ia que a alma tinha dito a verdade, sendo então admitida à vida eterna e/ou ressurreição. Se não, então o coração seria dado a comer a uma espécie de animal híbrido, indo então a alma para uma eternidade já não tão abençoada. – Interessante. – Existem muitos exemplos que poderiam ser mencionados na literatura bíblica acerca do simbolismo do coração. Em resumo, poderia ser dito que o coração é entendido como o símbolo da essência da pessoa, no respeitante ao que poderia ser considerado uma inclinação, ou não, para a honestidade, humildade e, neste contexto (bíblico) em particular, que papel a fé em Deus poderia desempenhar neste tópico. Por exemplo, quando o Profeta Samuel foi enviado por Deus para ungir um dos filhos de Jessé para que se tornasse o próximo rei de Israel, e enquanto observava todos os filhos e perguntava no seu íntimo se não seria este ou aquele por causa de como estes lhe pareciam, o Espírito de Deus disse-lhe que Deus não julgava segundo as aparências, mas olhava para o coração do homem – levando-o então a perguntar a Jessé (depois de ter notado que o Espírito de Deus não tinha escolhido nenhum daqueles que lhe foram apresentados) se ele não tinha mais filhos, ao que Jessé respondeu que sim, o seu mais novo, chamado David (que não estava presente na altura). »Preferi mencionar este episódio bíblico porque o mesmo parece aludir a um – que poderia ser entendido como o maior de todos – dos reforços que motivam essa conexão ou ligação a ser feita com o coração, isto é, o conhecimento que Deus tem acerca da interioridade do ser humano. Isso já foi ou já era de certa forma aludido, ainda que implicitamente, na maneira como os antigos egípcios entendiam serem os procedimentos no julgamento das almas na vida depois da morte, enquanto as palavras do defunto eram comparadas ao seu coração para se saber se eram verdadeiras. Esse contexto da vida depois da morte era acreditado pelo antigos Egípcios talvez ou certamente que não por causa das razões que temos presentemente (por causa do que Jesus revelou acerca da Realidade), mas talvez como uma compreensão intuitivamente propulsionada de modo a educar o povo a viver de acordo com o seu coração (já instruído numa lei universal transcendente, Ma’at, no caso egípcio), que resultava, ou assim se esperava, num relacionamento verdadeiro ou honesto entre o indivíduo e a divindade que, outra vez no caso egípcio, ainda que inadvertidamente, já aludia, ainda que implicitamente, ao que agora é designado no Catolicismo como a Omnisciência de Deus, isto é, foi entendido ser necessário educar acerca desse atributo divino de modo a alertar para a ilusão de se se pensar que alguma coisa pode escapar ao conhecimento de Deus, incluindo pensamentos e intenções íntimas que se guarda no coração. No respeitante a esta matéria, já Jesus disse e diz: não há um pequeno pássaro que desça do céu sem a permissão de Deus; e até os cabelos das vossas cabeças estão contados. Daí o porquê de exemplificar tanto com o episódio do profeta Samuel quando foi ungir David como rei de Israel e a crença egípcia antiga da vida depois da morte, neste caso, a comparação entre o que era dito na confissão negativa e o que o coração dizia na balança. Isto é, as almas eram já alertadas acerca do arquivo de verdade com que o coração já era de certa forma caracterizado e, posto isso, o imperativo de um comportamento honesto relativamente à entendida lei divina de modo a que o coração se assemelhasse à mesma, que é como quem diz, em resumo, o de ser verdadeiro e honesto aos olhos de Deus. – Então poderia ser dito que já em tempos antigos, a honestidade, em relação ou direccionada a um nível transcendental de existência, isto é, no que concerne a um relacionamento com uma divindade, era já procurado incutir no coração, já simbolizado como o centro da interioridade do ser humano, por de certa forma ser onde transportamos a bagagem que levamos connosco e de que daremos conta na eternidade, em face do que se acreditava ser a maneira correcta de viver de acordo com o que era considerado ser uma lei divina universal, isto é, acerca de ser verdadeiro/honesto e uno no coração, palavra e acção. Isto para dizer que o que poderia ser designado de uma consciência religiosa era já considerada necessária instigar no ser humano – não só, como poderia ser entendido, por causa de propósitos motivacionais que almejavam a uma maneira justa de viver, mas porque isso era também entendido como o único caminho a ser percorrido de modo a se obter a salvação eterna, dadas as circunstâncias da realidade da vida depois da morte, onde as nossas acções neste mundo persistem e são contabilizadas. – Bem dito. – Obrigada. E no Cristianismo? – As revelações privadas acerca do Sagrado Coração de Jesus e do Imaculado Coração de Maria talvez também possam ser entendidas como tendo basicamente a intenção de fazer conhecer aos homens o Amor imenso que Deus tem pela humanidade. Nas representações do Sagrado Coração de Jesus e do Imaculado Coração de Maria, os mesmos são usualmente encimados por chamas de fogo que simbolizam o Amor imenso e ardente que Deus tem pelas almas. O Sagrado Coração de Jesus e o Imaculado Coração de Maria também costumam ser representados com uma coroa de espinhos. Estas simbolizam o Amor sofredor de Jesus e de Maria, a Consciência da Realidade, poder-se-ia entender. Com a imagem destes Corações sofredores, parece que não se pode deixar de pensar em São Francisco de Assis, caminhando pelos bosques, enquanto se lamenta em voz alta: «o Amor não é amado!».
Posted on: Fri, 12 Jul 2013 18:01:53 +0000

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