"Restauração" e "Revolução Industrial": Direitos Humanos em - TopicsExpress



          

"Restauração" e "Revolução Industrial": Direitos Humanos em crise Com a derrota definitiva de Napoleão em 1815 perante os exércitos da coligação anti-francesa (principalmente Áustria, Inglaterra, Rússia e Prússia), iniciavam-se quinze opressivos anos em que foram abolidos da Europa continental quase todos os vestígios de liberdades — exceto, evidentemente, a liberdade de empreendimento e de lucro. Foi o período conhecido como "Restauração". Sob a batuta da "Santa Aliança" (Rússia, Áustria e Prússia), monarquias reacionárias retornaram ao poder, promoveram a caça sistemática aos militantes revolucionários, colocaram a imprensa sob censura e se esforçaram por expurgar do ambiente cultural europeu aquelas "perigosas" idéias de liberdade e igualdade. A Inglaterra, satisfeita com a derrota imposta à velha rival, ficou fora da "Santa Aliança", seja porque lhe convinha cuidar de seus próprios interesses econômicos, seja porque sua burguesia liberal e sua aristocracia há muito tempo já haviam superado o absolutismo do rei e negociado um modus vivendi entre si. Na França, a monarquia foi restaurada em 1815, assumindo o trono Luís XVIII, irmão de Luís XVI. Mas isso não significou o retorno ao ancien régime anterior a 1789: as relações econômicas capitalistas já estavam perfeitamente consolidadas e, politicamente, a grande burguesia francesa não teve maiores dificuldades para acomodar-se a um regime que não interferiu na acumulação de capital. A expressão mais característica da resistência popular européia durante os anos sombrios da Restauração assumiu a forma do movimento dos carbonários(95). Nesse ambiente de conservadorismo, os Direitos Humanos, sofreram retrocesso generalizado, despontando contra eles uma agressiva crítica promovida pelos governos e pela Igreja Católica. "Para os governos conservadores depois de 1815 — e que governos da Europa continental não o eram? — o encorajamento dos sentimentos religiosos e das igrejas era uma parte tão indispensável da política quanto a organização da política e da censura: o sacerdote, o policial e o censor eram agora os três principais apoios da reação contra a revolução. (...) Além do mais, os governos genuinamente conservadores se inclinavam a desconfiar de todos os intelectuais e ideólogos, até dos que eram reacionários, pois, uma vez aceito o principio do raciocínio em vez da obediência, o fim estaria próximo. Conforme escreveu Friedrich Gentz (secretário de Metternich) a Adam Mueller, em 1819: ‘Continuo a defender esta proposição: a fim de que a imprensa não possa abusar, nada será impresso nos próximos...anos. Se este princípio viesse a ser aplicado como uma regra obrigatória, sendo as raríssimas exceções autorizadas por um Tribunal claramente superior, dentro em breve estaríamos voltando a Deus e à Verdade"(96). Embora sobrevivesse na Igreja um pensamento — minoritário e marginal — receptivo a noções de progresso, sua hierarquia aferrou-se numa posição de repulsa, não só às idéias de igualdade e de direitos sociais para os trabalhadores, como também antiliberal. Essa inflexibilidade perduraria até o final do século XIX, só vindo a experimentar mudanças em 1891, quando o Papa Leão XIII publicou sua encíclica Rerum Novarum, em que, ao mesmo tempo em que demarcava escrupulosa distância do socialismo, lamentava os males sociais produzidos pelo capitalismo. Essa ofensiva ideológica de caráter regressivo congelou os direitos das classes populares no patamar da igualdade civil (jurídico-formal) alcançado durante a primeira fase da Revolução Francesa de 1789, sem concessões que lhe estendessem os direitos políticos quase alcançados na segunda fase daquela revolução. Além da "Restauração", abateram-se também sobre os Direitos Humanos novos danos, não mais decorrentes de resquícios feudais ou do absolutismo, mas do próprio desenvolvimento da economia capitalista. No início do século XIX, começaram a estender-se sobre partes da Europa os efeitos da "Revolução Industrial" que já estava adiantada na Inglaterra. Neste país, a outra grande potência européia daquele tempo e inimiga histórica da França, a política já havia acertado o passo com a burguesia há mais de um século. Pela "Revolução Gloriosa" (1688), o Parlamento, dominado por uma aliança da alta burguesia com a nobreza anglicana libe-ral, apoiou o príncipe Guilherme de Orange, que destronou militarmente seu sogro, o rei Jaime II. Essa união da maioria das classes dominantes no Parlamento possibilitou-lhes mobilizarem as classes populares em seu favor, sem perder o controle sobre elas (como ocorrera na França), e acarretou a substituição revolucionária do absolutismo por uma monarquia constitucional bicameral. Foi, então, assinado o Bill of Rights (Declaração de Direitos), implantou-se a liberdade de imprensa, a livre iniciativa econômica desvencilhou-se de restrições anteriores, e logo desenvolveram-se outras reformas que permitiram à acumulação privada de lucro erigir-se em meta dominante das políticas governamentais(97). Os resquícios do problema camponês foram "resolvidos" pelos Enclosure Acts ("decretos de cercamentos"), pelos quais as antigas terras de uso comum foram cercadas e interditadas aos camponeses, forçando seu êxodo massivo para as cidades, dando lugar ao surgimento de extensas fazendas para a produção de lã e cereais. Formou-se assim na Inglaterra, em poucas décadas, uma numerosa classe operária urbana: economicamente, "livre" de seus antigos meios de produção e, juridicamente, "livre" para locomover-se do campo para os bairros miseráveis das cidades e lá abraçar a perspectiva de vida que lhe restava, ou seja, vender sua força de trabalho a baixíssimo preço a quem quisesse empregá-la. A Inglaterra já dispunha também de vasto império colonial, além de haver-se tornado a maior potência comercial da época. Quando, no último quarto do século XVIII, sobreveio intenso desenvolvimento tecnológico — invenção da fiandeira e do tear mecânicos, produção de ferro com carvão de coque, navios e locomotivas a vapor, etc. — a burguesia britânica pôde tirar partido da reunião privilegiada dessas duas condições (abundância de força de trabalho "livre" e monopólio quase solitário do mercado mundial) para promover a substituição das antigas manufaturas pela indústria mecanizada moderna. O país ganhou dianteira no desenvolvimento do capitalismo e, em 1780, já iniciava o grande salto produtivo da Revolução Industrial, que faria dele a principal potência econômica, militar e colonial do planeta por mais de cem anos. Mais devagar, e com algum atraso, essas transformações tecnológicas e produtivas foram se operando em outros países ao longo da primeira metade do século XIX(98). E foram sempre acompanhadas do desenvolvimento ou consolidação de noções jurídicas novas — correspondentes a essas mudanças econômicas — como, por exemplo, o hoje tão familiar instituto do "sujeito de direitos", inerente à igualdade jurídica e indispensável para que compra e venda capitalista da força de trabalho pudesse passar a ter livre curso(99). As consequências sociais da Revolução Industrial são bem conhecidas, mas é útil fixar na memória seus traços de maior relevo. Por um lado, multiplicou enormemente a riqueza e o poderio econômico da burguesia. Por outro, desestruturou o modo tradicional de vida da população, tornando-o permanentemente instável, aprofundando dramaticamente as desigualdades sociais e fazendo tornarem-se familiares duas realidades terríveis: o desemprego e a alienação do trabalhador em relação ao seu produto. No antigo sistema de corporações de ofícios da época do feudalismo, os artesãos, como se sabe, eram donos dos seus instrumentos e objetos de trabalho, produziam com habilidade pessoal cada artigo em sua casa-oficina, do começo ao fim, para um mercado pequeno e estável e colhiam os resultados financeiros de sua atividade. No sistema manufatureiro, que havia se desenvolvido na Europa durante a fase inicial do capitalismo (mercantilismo, mais ou menos entre os séculos XVI e XVIII), essa independência do trabalhador deu o primeiro passo em direção ao desaparecimento: os artesãos quase sempre ainda eram proprietários de seus instrumentos, mas o crescimento e a instabilidade do mercado forçaram-nos a trabalharem por encomendas de capitalistas-mercadores, de quem passaram, inclusive, a depender para o adiantamento das matérias-primas. Havia casos em que a antiga oficina já tendia a se expandir, agregando mais empregados e começando a introduzir uma divisão de trabalho com especialização de funções entre eles. Os artesãos, embora já estivessem se tornando tarefeiros-assalariados, ainda executavam pessoalmente quase todas as tarefas necessárias à produção de um artigo, mantendo o conhecimento do conjunto de seu processo produtivo. Com a Revolução Industrial, tudo se transformou: o empresário capitalista, dono dos novos meios de produção (máquinas, instrumentos, matérias primas e instalações) passou a agrupar no seu estabelecimento grande número de assalariados sob seu comando e a habilidade individual perdeu importância, pois a fábrica mecanizada generalizou e radicalizou a divisão do trabalho, fragmentando a produção de cada artigo em etapas sucessivas e estanques, cada uma delas exigindo quase só movimentos repetitivos do trabalhador. Completava-se, assim, a separação do trabalhador em relação a seu produto: não possuía mais os meios de produção, perdeu o domínio técnico do conjunto do processo produtivo, e deixou de ser senhor dos resultados de seu trabalho. Como a produtividade das fábricas mecanizadas era muito maior do que a das manufaturas, elas não tinham necessidade de absorver toda a imensa força de trabalho "liberada", seja pela expulsão dos camponeses das áreas rurais, seja pela ruína dos remanescentes urbanos do antigo artesanato individual. Em consequência, milhões de trabalhadores vieram a compor o que viria a ser chamado de "exército industrial de reserva": multidões de desempregados que, nos momentos de expansão da economia, eram convocados dessa "reserva" e retornavam ao assalariato enquanto o "capitão" da indústria deles necessitasse. Como essa "reserva" humana nunca se esgotasse, ela logo passou a desempenhar a função econômica de manter baixos os salários dos que estivessem empregados. À medida em que o capitalismo caminhou para o amadurecimento, duas características do seu funcionamento foram se tornando evidentes: primeiro, uma contradição completa entre o caráter social da produção e a natureza individual da apropriação de seus resultados; segundo, uma tendência à anarquia na produção. No artesanato feudal, como visto, tanto a produção quanto a apropriação de seus resultados estavam unidas na pessoa do artesão. No capitalismo concorrencial esses dois momentos sofreram cisão vertical: o novo modo de produção, com extremada divisão social do trabalho e meios de produção mecanizados, demandava o concurso de centenas ou de milhares de trabalhadores em cada fábrica, ou em fábricas sucessivas, agregando ainda trabalhos desenvolvidos virtualmente por toda a sociedade, desde a extração das matérias primas, até culminar na mercadoria acabada; mas a apropriação dos resultados dessa cadeia produtiva social passava a ser feita individualmente pelos proprietários dos novos meios de produção, que "redistribuíam" uma parte desses resultados sob a forma de salários. A desigualdade, não mais pelo privilégio de nascimento, estava instalada no âmago do sistema - era inerente à sua lógica. Por outro lado, como a única motivação produtiva era a busca do lucro, os capitalistas concentravam-se continuamente nos setores que mais favorecem isso e concorriam entre si pelo aumento da produção enquanto perdurasse a demanda do mercado. Contraditoriamente, quanto mais a produção se revestia de rígida disciplina e organização no interior da fábrica, mais desorganizada socialmente se tornava. Periodicamente, essa corrida sem planejamento social atingiria o ponto de saturação e a crise de superprodução se instalaria com sua coorte de falências, crescimento do desemprego e da miséria. Não que tivesse havido superprodução em relação às necessidades de toda a sociedade; a superprodução é relativa àquela parcela da população com poder aquisitivo, chamada mercado consumidor, à qual a produção capitalista se dirige. Malgrado as extraordinárias possibilidades produtivas geradas pela ciência e pela tecnologia, a atividade econômica se deterá, permanecendo ociosa — nos limites do mercado(100). Assim, os efeitos combinados da "Restauração" e da "Revolução Industrial" instauraram na Europa, ao longo da primeira metade do século XIX, o que pode ser chamado de uma primeira grande crise dos Direitos Humanos, desde que haviam sido formulados pelos filósofos racionalistas do século XVIII. Ela se configurava de duas maneiras: como estagnação e como agravamento. Era como estagnação no plano institucional, devido à resistência, tanto da reação monárquica como dos liberais, em estender os direitos políticos aos trabalhadores. E era como agravamento no plano econômico-social pois, além da convergência dessas duas forças no propósito de manter a igualdade em estado de raquitismo jurídico-formal (recusa em ampliá-la ao campo social), a Revolução Industrial havia também piorado dramaticamente as condições de vida dos trabalhadores. Até medidas instituídas com o propósito exterior de aliviar os tormentos dos desvalidos, muitas vezes terminavam por agravá-los de outras formas: "O liberalismo econômico se propôs a solucionar o problema dos trabalhadores de sua maneira usual, brusca e impiedosa, forçando-os a encontrar trabalho a um salário vil ou a emigrar. A Nova Lei dos Pobres de 1814, um estatuto de insensibilidade incomum, deu aos trabalhadores (da Inglaterra) o auxílio-pobreza somente dentro das novas workhouses (onde tinham que se separar da mulher e dos filhos para desestimular o hábito sentimental e não malthusiano de procriação impensada) e retirou a garantia paroquial de uma manutenção mínima"(101). Nessas ocasiões em que a miséria batesse à porta, sequer vestígios de cidadania se preservariam: "...os indigentes abriam mão, na prática, do direito civil da liberdade pessoal devido ao internamento na casa de trabalho, e eram obrigados por lei a abrir mão de direitos políticos que possuíssem. Essa incapacidade permaneceu em existência até 1918"(102). Claro, aos que não viam mais como sobreviver no Velho Mundo, restava a alternativa de renunciar a tudo, cruzar o oceano e ... recomeçar a vida na América. Pelo menos na sua grande porção norte, não havia reis e, dizia-se, era a terra da liberdade.
Posted on: Fri, 13 Sep 2013 02:47:25 +0000

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