A Flor do Meu Jardim – Do capítulo, 92 até o último - TopicsExpress



          

A Flor do Meu Jardim – Do capítulo, 92 até o último . Capítulo, 92. Dasdores era capaz de aturar quase tudo, menos viver isolada, sem a companhia de um homem. Não conseguia superar, o que para ela significava um sacrifício intolerável. Sozinha não passava de uma pessoa insatisfeita consigo mesma e com o mundo. Ultimamente cuidava das tarefas com má vontade, pensava, ininterruptamente, em encontrar alguém capaz de temperar seus dias e noites sem graça. Na intimidade do seu quarto rolava na cama, custava conciliar o sono. A fogosa Dasdores estava carente de afeto. Já não agüentava mais suportar tanto desejo. Seu corpo sensual clamava por carinho, reclamava da solidão. Pretendia se relacionar com um sujeito bem-sucedido. Determinados negros amealharam um bom dinheiro para comprar a alforria, inclusive possuíam escravos, adquiriram propriedade, conquistaram certo respeito e agora constituíam o foco da busca de Dasdores. Os brancos dificilmente assumiam as negras, queriam uma relação sem compromisso com elas. Caso não arrumasse um preto desse padrão, não se importaria de se tornar amante de um branco qualquer, desde que a sustentasse, lhe proporcionasse comodidade e conforto. No entanto, preferia mesmo um companheiro estável. A sua insatisfação aumentou de tal maneira que Edite percebeu: - Que bicho lhe mordeu Dasdores? Deus me livre, nunca vi uma pessoa com tanto mau humor. - Ai, Sá Edite, sem um homem não sou ninguém. - Homem? É esse o seu problema? Pois é justamente o que sobra na colônia. Aqui há quatro para uma mulher e você não consegue nenhum? Tão jovem e tão bonita? Imagine quando virar uma velha caquética. Aí, então você vai penar. - Ai, Sá Edite nem me lembre disso. Vou penar mesmo. Mas, quando tiver velha não vou querer mais nada com ninguém. - Você é que pensa. Esse negócio está na cabeça da gente, se não conseguirmos controlar toma conta e ficamos infeliz. - Preciso de um homem urgentemente, senão morro. - Toma um banho frio Dasdores. Quem sabe melhora? - Já tomei três. - Só me faltava essa. Você nem separou de Valentim e já ta cheia de comichão. Tome prumo menina, até parece uma piririca. Vá cuidar do serviço sua sirigaita sem modos e esqueça essa besteira. Homem é problema Dasdores, nem sempre é solução. - Como queria um problema desse Sá Edite, como queria. Não tem jeito, hoje irei ao batuque. Vou arranjar alguém lindo pra mim. - Essa garota tem minhoca na cabeça. Você ainda vai arranjar encrenca Dasdores. - Encrenca nada. Em casa estarei sempre sozinha, pra conquistar alguém tenho de sair. Vou ao batuque bem arrumada Sá Edite. - É você é jovem tem todo o direito. Deixe as coisas arrumadas antes de sair. - Está bem. Dasdores não precisava se esforçar para ficar bonita, a natureza a privilegiou. Ao pisar no batuque logo chamou a atenção de Tiziu. O neguinho animou-se, cantou como um rouxinol e tocou o tantã com incomum entusiasmo, pois esperava conquistá-la. Ela o olhava de soslaio, com absoluta indiferença. Tiziu insistia, o coitado confiava piamente no seu poder de sedução. Nesse momento Ignácia aproximou-se de Dasdores. - O que você está fazendo aqui Ignácia? Por quê não está em casa com o marido? - Até que me esforcei Dasdores. Não consigo esquecer o Tiziu. - Aquilo! Ele é um ninguém tirado a conquistador. - Eu sei. O pior é que sei disso. Não posso fazer nada. Gosto dele e Tiziu nem me dá bola. Sai com as mulheres na minha cara. - Ignácia você não dá sorte mesmo. O tal Gasparino Leão também! Virgem. Ele é ruim que nem o capeta. - Não Dasdores. Pra mim ele é bom. Só falta adivinhar minhas vontades. É carinhoso e não discute comigo... - Então? O que está faltando? - Gosto de Tiziu. Sou apaixonada por ele. Eu tentei Dasdores, só não consegui esquecer o desgraçado, o raio do negro Tiziu. - Preste atenção Ignácia. Outra mulher poderá se interessar por Gasparino Leão. - Eu não me importo. Tomara que ele arranje alguém, assim me deixará em paz. - Ele é bem de vida Ignácia. É um bom partido. - Bem de vida não, ele está rico. Imediatamente Dasdores virou a melhor amiga de Ignácia. Elas moravam perto, valendo-se desse pretexto, a visitava regularmente nos períodos de folga. Não necessitou se esforçar para constatar a notória infelicidade de Gasparino. Tinha a pior espécie de relacionamento, porque convivia com uma mulher que não o amava. Dasdores se achegou de mansinho, então Gasparino descobriu que Ignácia não era a única mulher do mundo. Existiam outras além dela, além das negras, além das brancas. Também existiam muitas índias, asseadas, limpas usando enfeites excêntricos, majestosos... Capítulo, 93. O quilombo não tinha uma estrutura organizada e forte, por isso enfraqueceu ainda mais com a divisão política entre a facção de Aboubakar e a de Kuami. A população já não conversava abertamente, só cochichavam pelos cantos. A desconfiança calou as gargalhadas, desanimou as festas, encheu o local de suspeita. Não havia jeito. Aboubakar adorava o poder, sobretudo conhecia a forma de conservar-se nele. Sua capacidade de maquinar, de espalhar boato, fazer intriga, de mentir, jogar com as pessoas não o deixava perder o cargo e o transformou num mestre da maquiavelice. Em se tratando de patifaria ele reinava absoluto. Desde o Oásis de Skura, valia-se da sua capacidade de convencimento para persuadir as pessoas a dar a vida por ele. Enquanto lutavam, Aboubakar utilizando-se da prerrogativa de líder, permanecia no palácio, tramando, amando suas esposas e odaliscas, se fartando em lautas refeições, na mais absoluta segurança. Caso ocorresse um prenúncio de perigo à sua integridade física usava o curioso artifício de mudar a sede sob o pretexto de garantir a governabilidade. Embora não passasse de um aproveitador e medroso, conseguia provar o seu patriotismo ao povo. Com a presença de Kuami no quilombo vislumbrou um horizonte sombrio, uma ameaça, o prenúncio do seu enfraquecimento, da perda da autoridade e conseqüente risco de não se perpetuar no poder. Os descontentes com Aboubakar incentivavam Kuami a enfrentá-lo. Incitavam-no a derrubá-lo junto com a temida guarda comandada por Okumé. Ambá, especialmente Ambá observava a movimentação política bem desconfiada. Preocupava-se com o futuro do amado. Acreditava na bravura, na força de caráter de Kuami. Ele não correria dos inimigos, mas duvidava da coragem dos correligionários na eventualidade de necessitarem combater e com certeza precisariam. Inquietava-se porque conhecia Aboubakar de longa data. Kuami encararia uma raposa, ardilosa, sanguinária, sem escrúpulos: - Temo por você Kuami. - Por quê? - O povo do quilombo vive o incitando a enfrentar Aboubakar. Na hora da batalha eles o abandonarão. Você ficará sozinho e é tudo que Aboubakar deseja. - Você acha? - Quando morava no harém do maldito Aboubakar, conheci um homem bom, Yazid. Ele me explicou muita coisa sobre política e poder. Ele considerava Aboubakar um irmão, foi traído e executado. Conheço Aboubakar muito bem. Comprará seus amigos com promessas que jamais cumprirá. Quando sentir que o abandonaram, o assassinará Kuami. - Será? - Montará um circo e o julgará em nome da lei e da ordem. Juízes venais o condenarão a morte. Acredite em mim Kuami. Ele fez isso com Yazid. - Sou um guerreiro Ambá, não entendo de política. Aboubakar pode até me massacrar, mas não será tão fácil assim. - Ficará sozinho Kuami. Esse bando de gente o bajula, porém são cordeiros. Não terão coragem de enfrentar ninguém, quanto mais Okumé e seus guardas. - Então? - Vamos embora daqui. Vamos viver em paz. Você e eu num lugar bem distante de confusão. O quilombo não é a nossa casa. - É difícil correr... Até queria... - Kuami! Preste atenção. Aboubakar deseja livrar-se de você por minha causa e por motivos políticos. Ele me quer. Você é um empecilho... Certa ocasião Yazid disse que: “a política é a arte de digladiar no esgoto”. Isso não serve para nós. Vamos embora. Já sofremos demais, vamos aproveitar para ter um pouco de tranqüilidade. - Vamos sim Ambá. Acho que você tem razão. Não vale a pena, lutar pelo quilombo, afinal é apenas outro lugar pelo qual passamos. Não é o nosso lar. Ambá e Kuami juntaram os poucos objetos pessoais e se dirigiram para a saída do quilombo, quando a guarda chefiada por Okumé os cercou: - Para onde estão indo? - Não é da sua conta Okumé. - Você e Ambá estão presos por subversão à ordem do quilombo. - Estamos indo embora Okumé. Não estamos criando nenhum problema. - Estão presos. - Enfrente-me sozinho Okumé. Vamos ver se tem coragem para isso. - Não luto contra bandido Kuami. Mato bandido da sua laia. Será julgado, se reagir o eliminaremos agora. Essa é a ordem. Vamos. Como Ambá previra, não apareceu ninguém para apoiá-lo. Ficou ali plantado cercado por assassinos treinados, fortes, determinados. Então Kuami entendeu a posição de Ambá direitinho. Ela lhe chamara a atenção para esse fato e de fato o abandonaram. Estava sozinho, a mercê da própria sorte. Arrependeu-se de dar ouvidos àquele monte de velhacos que se diziam seus amigos. Capítulo 94. Os quilombenses largaram as tarefas para acompanhar a prisão de Kuami e Ambá. A maioria apoiava a decisão, afinal, segundo a justificativa oficial ocorria a detenção de ambos como medida preventiva para restabelecer a ordem pública. O restante se omitiu, pelo menos mantiveram um silêncio sepulcral. Enquanto Okumé e os guardas os levavam até Aboubakar, um monte de gente os seguia, como uma comitiva, os insultando com palavrões. Ao desfecharam a primeira saraivada de tiro para o ar, os quilombenses se voltaram pro ponto dos disparos. Quando perceberam a ofensiva formada por um esquadrão poderoso, apavoraram-se e ninguém teve coragem de reagir. Okumé não esboçou a menor reação, rendeu-se de cara. Depositou as armas no chão, levantou as mãos, permaneceu calado e imóvel igual a um boneco vulgar. Minutos antes Aboubakar observava de longe, com indisfarçável satisfação, a captura de Kuami e Ambá. Pego de surpresa com o cerco tentou fugir, porém não havia jeito de escapar. Mais uma vez a vigilância deficiente o vitimara. Tratou-se de uma negligência generalizada. Ele descuidou da fiscalização e ao invés de assumir parte da responsabilidade, preferiu culpar a guarda que não escalou as sentinelas nos postos estratégicos para vigiarem a aproximação do inimigo: “Malditos desleixados” – pensou. Jaime Lemos adiantou-se e disse: - Quem reagir morrerá. Fiquem quietos e tudo sairá bem. Não desejamos machucá-los. Chico Bicudo viu Aboubakar e foi ao seu encontro: - Aboubakar, Aboubakar... E agora, o que fará? - Poupe-me Chico. Tenho alguma riqueza guardada, lhe darei tudo. Deixe-me fugir. - Fugir? Você não tem nada Aboubakar. O que guardou na sua cabana ou fora dela me pertence. Chama-se espólio de guerra. Vá se juntar aos outros. - Para onde nos levará? - Para o cativeiro, para o seu lugar. Não devia ter fugido Aboubakar. Pagará por isso. - Perdoe-me Chico, afinal somos amigos. - Está muito enganado. Nunca fui seu amigo. Aliás, nem gosto de você. Não passa de um escravo Aboubakar, não mantenho amizade com escravos. Bato e os obrigo a trabalhar. Não o refrescarei. Servirá de exemplo, morrerá de tanto apanhar. - Não faça isso Chico. Sempre gostei de você e fiz tudo que mandou. - Então, porque fugiu e levou essa montoeira de negros consigo. Vocês têm dono Aboubakar. São propriedades do Nhô Prudente, se esqueceu disso? - Por favor,... - Cala a boca Aboubakar. Não gosto de conversar com ladrão. Roubou mantimentos e escravos do patrão, depois partiu sem a menor consideração. Deixou-me numa situação difícil, agora vem com essa conversa de amigo? Vai penar Aboubakar. Vou lhe machucar sem dó nem piedade. - Pelo amor de Jesus Cristo... - Seu miserável. Você nem é cristão. Não tente me enrolar. Cala a boca que será melhor. Entre na fila com os outros. Dito isso desferiu uma varada nas costas de Aboubakar. Ele gritou, muito mais por medo do que de dor e correu para se juntar aos demais. Após os amarrarem Jaime Lemos deu a ordem que cortou o coração dos quilombenses: - Botem fogo nessa espelunca. Acabem com o maldito quilombo. Não quero nada em pé. Derrubem tudo, destruam tudo. Coloquem esses crioulos preguiçosos para marchar em direção ao engenho. - Jaime, se colocar fogo será um convite, deixaremos uma pista e tanto para os índios. - Já eliminamos os batedores. A tribo não sabe onde estamos... - Com a fumaceira logo descobrirão. - A idéia é essa Chico. Escale alguns guaranis para vigiarem a redondeza. Caso os aimorés apareçam seremos avisados. Então armaremos a emboscada. Deixe-os vir até nós. - Ah! Entendi a estratégia. É boa. - Vamos andar. Qualquer descuido será fatal. Um pouco afastado dali, presos com os escravos, Kuami e Ambá se entreolharam, então ela perguntou: - De novo? Aprisionados novamente? Até quando Kuami? Será que nunca teremos paz? - Calma Ambá. Pelo menos ainda estamos vivos e juntos. - Já não tenho mais lágrimas para chorar, já não sei mais rezar para suplicar ajuda aos ancestrais, aos deuses da floresta. Até quando Kuami? Até quando viveremos assim? Capítulo, 95. Os bandeirantes avistaram o engenho no por do sol, à tardinha, quase noite. Jaime Lemos estranhou a fogueira, a barulhada, os tiros para o ar. Chamou Chico Bicudo: - Eles vivem assim, fazendo essa algazarra? - Não Jaime, nada disso. Tem alguma coisa errada. - Mande alguns batedores investigarem o que está acontecendo. - Quem? - Alguns guaranis e um branco. Assim farão mais silencio. Será que o engenho foi atacado por alguma tribo? - Não creio, os índios não possuem arma de fogo Isso está me cheirando mal Jaime. - Dependendo do que acontecer, nós montaremos três colunas e assaltaremos pelos flancos. Dois grupos avançarão primeiro e pelos lados. Depois liberamos a terceira unidade e o pegaremos de frente, num bolsão. O que você acha? - É uma boa tática. De qualquer modo temos o elemento surpresa a nosso favor. - Justamente. Devem estar desatentos. Mande os batedores Chico. Foram e retornaram rapidamente. O branco falou: - São piratas. - Piratas? - Jaime e Chico perguntaram admirados. - Sim. - O que estão fazendo aqui? - Comendo, bebendo, festejando... Estão bêbados. - Vamos seguir o plano. Mande as duas colunas flanqueá-los. A seguir os pegaremos de frente. Tom Hawkins não se achava completamente embriagado, por isso pressentiu a furiosa investida e alertou os homens: - Às armas, às armas. Estamos sendo atacados. O grupo de ébrio, logo recobrou os sentidos e partiu para a luta. Além da inesperada arremetida, os corsários se viram cercados por guerreiros experientes. Sentindo que a batalha estava perdida, o Capitão ordenou a retirada. Tentaram fugir para o navio, as duas divisões laterais bloquearam a saída da praia. Eles se aventuraram espaçar pelo continente, a tropa de Jaime Lemos fechou a brecha. Os bandeirantes abateram os piratas como moscas. Não desejando correr o risco de sacrificar seus homens num combate ganho, Jaime Lemos determinou o cessar fogo. Acabaram com setenta por cento dos facínoras, libertaram os prisioneiros, principalmente a sinhá Conceição. Ela tomou a frente sem pestanejar e passou a comandá-los aos berros, plena de ódio: - Matem todos, não poupem nem os feridos, menos o maldito Capitão. Eu cuidarei dele. Sinhá Conceição, os escravos e as escravas vítimas da lascívia dos piratas eliminaram os sobreviventes a golpes de machado. Ao assistirem a chacina os bandeirantes quiseram intrometer-se, Conceição reagiu: - Não se metam. Deixe-nos. Cuidaremos desses patifes. Depois do banho de sangue, Jaime Lemos e Chico Bicudo, indagaram: - O quê aconteceu aqui Sinhá? - Nada que mereça ser lembrado. Vamos arrumar a casa e recomeçar a vida. - E Nhô Prudente? - Morreu. Já o enterramos. - Morreu? - Sim, os bandidos o mataram. - De onde surgiu essa gentalha? - Eu não sei Chico. Eu não sei. Eles não falaram o que queriam. Pelo menos comigo. - Interrogaram alguém? - Eu não sei... Eu não sei... Eu não sei... Já disse. Vamos esquecer o que passou e recomeçar. Temos muito trabalho pela frente. Amarre o Capitão Tom no paiol. Amarre-o nu e de pernas abertas. Deixe o resto comigo. - Perdão? - É isso mesmo que você ouviu. Amarre-o nu, pelado, sem roupa e de pernas abertas. Cuidarei do resto. - O que houve aqui Sinhá? - Nada que mereça ser lembrado. Já disse. - Vamos amarrá-lo agora Sinhá. - Mande esquentar um ferro na fornalha, traga para mim e me dê sua faca. - Perdão? - Não me faça repetir Jaime Lemos. Apenas cumpra minha determinação. A sinhá Conceição pegou a faca e o ferro em brasa, entrou no celeiro e encontrou o Capitão Tom Hawkins, nu e amarrado de pernas abertas. Ao vê-la ele disse: - Sentiu saudade gostosura? –Em seguida soltou uma ruidosa gargalhada e completou: - Nenhuma mulher consegue me esquecer. Ela segurou a faca com firmeza, enfiou-a na unha da mão direita do Capitão e forçou até arrancá-la. O Capitão substituiu o riso por um espantoso urro de dor: - Eu não vou lhe matar desgraçado. – Mentiu - Devolva o que roubou do meu marido. Devolva os diamantes. - Estão no navio. – Respondeu apressado. - Onde? - Na minha cabine. Jaime Lemos, Chico Bicudo e a Sinhá foram até o navio, ela os deixou esperando no convés, penetrou no camarote do Capitão, revistou a gaveta da escrivaninha onde localizou os diamantes. Voltou ao paiol com a mesma faca amolada, com o ferro em brasa e trancou a porta. No engenho não se pronunciava uma simples palavra, se limitavam a escutar os berros do chefe dos piratas, berros de pura agonia. No ambiente de atmosfera carregada, aguardavam o desfecho dos fatos com viva curiosidade. Após algumas horas calou-se a voz, a porta do galpão se abriu e a Sinhá Conceição saiu meio tonta, com o olhar duro, porém distante. As escravas se apressaram em ajudá-la, a ampararam e a levaram para a casa-grande. Tinham algo em comum, pela primeira vez compartilhavam a mesma angústia, a mesma revolta. Nem a vingança sossegaria seus corações ou as faria esquecer tamanho abuso. Permaneceram juntas, agarradas uma na outra, solidárias, sem distinção de cor ou condição social, chorando um choro baixo, mas carregado de amargura. Elas haviam sido ultrajadas no que há de mais sagrado, o direito de dispor do próprio corpo. Fora da casa os resignados, Jaime Lemos e Chico Bicudo entreolharam-se e ponderaram: - Chico! Na nossa ausência, algo grave, algo terrível aconteceu aqui. - Como a Sinhá disse Jaime: “Nada que mereça ser lembrado”. Pra mim o assunto está encerrado. - Pra mim também. Quer saber de uma coisa Chico. - O quê? - Nosso trabalho não é no engenho. Vamos dar um tempo e sair na captura dos índios. Questão de uma semana e partimos. - É. Vamos conversar com a Sinhá. Acredito que por ora não há perigo com os piratas. Deixaremos alguns homens para ajudar na segurança do engenho. - Vamos preparar as coisas Jaime. Capítulo, 96. - É uma armadilha puçanguara. Não passa de uma armadilha. Acham que podem me enganar. Eles se equivocam. - A fumaça aparece de longe Tupurapo. Os brancos são insensatos, deixam rastros por onde passam. - Esses são diferentes. São guerreiros perigosos, experientes. Naquele lugar só restam cinzas, Eles tocaram fogo em tudo só pra chamar nossa atenção... - Será Tupurapo? - Escolheram o campo de luta. Eles conhecem aquela região e não esta. - Então? - Aguardarei os acontecimentos. Esperarei a movimentação deles. Não precipitarei, terei paciência. Mandarei batedores os vigiarem. Jaime Lemos e Chico Bicudo estavam acampados há quase três semanas perto dos escombros do quilombo, onde armaram uma emboscada. Os guaranis cortavam a mata de norte a sul, leste a oeste e não encontravam nenhuma pista: - E, aí Chico? - De qualquer maneira haverá matança. Vamos atrás deles. - Não sei não Chico.Tem algo errado. Eles viram a fumaça e não vieram. - Sempre saímos na captura dos índios, os enfrentamos no território deles, região totalmente desconhecido para nós. Essa é a vida que escolhemos Jaime. Temos de correr o risco. - Tenho dúvidas Chico. Dessa vez é diferente. - Você está com medo Jaime? Quer viver para sempre? - Não é isso. Só não quero perder. Não gosto de perder. - Caso percamos estaremos mortos de qualquer jeito. Então não importa. - É a sua decisão? - Não. É a minha opinião. Você é o chefe. Tomar decisão difícil é responsabilidade sua. - Sempre o ouvi e dividimos a carga. - No final a decisão é sua Jaime. De qualquer forma estou dando um palpite. Ou ficamos encalhados aqui ou vamos atrás dos aimorés. Não tem jeito. - Vamos aguardar mais uma semana e ver o que acontece. Caso não apareçam, sairemos para caçá-los. - Está decidido. Mais de uma semana se passou: - Chico é hora de levantar acampamento e exterminar os desgraçados. Quem eles pensam que são? - È assim que se fala. - Não há necessidade de cobrir grande área por dia. Andaremos só o necessário para não esgotar os homens. Temos de estar descansados para lutar a qualquer momento. Caso caminhemos longa distância não agüentaremos o tranco. - Concordo plenamente. - Marcharemos num grupo coeso. Em caso de ataque formaremos um círculo para enfrentá-los melhor. Assim não haverá brecha, -terão dificuldade de entrar em nossa defesa. - A tática é boa Jaime. Não vamos nos afastar da água doce, haverá garantia de comida e não sentiremos sede. - Bem pensado. Nada de caminhar na praia onde o sol castiga muito mais do que na floresta. - Então vamos. Os bandeirantes caminhavam por um tempo e paravam para descansar. Não se tratava de uma tropa displicente, mas, sim de uma unidade, cautelosa, preparada. Disposta a enfrentar o perigoso e iminente ataque do inimigo. Então a ofensiva aimoré chegou de todos os cantos, pela frente, pelos flancos e pela retaguarda. Os bandeirantes se defendiam com coragem. Enfrentavam cerca de dois mil índios furiosos, determinados, revoltados. Foi o último combate de Jaime Lemos, Chico Bicudo e seus homens. Capítulo, 97. Os raios de sol chegaram trazendo consigo o crepúsculo matutino. Dasdores acordou sobressaltada, o clarão da manhã, a claridade de uma manhã majestosa obrigou-a a cerrar os olhos. Não planejara passar a noite ali, contudo os sucessivos abraços, os incessantes beijos a esgotaram, então ela dormiu. Tateou até encontrar o corpo nu do homem que também caíra no sono. Levantou-se preocupada, vestiu a roupa e saiu de fininho. Ao abrir a porta do quarto, ela rangeu fazendo Dasdores estremecer. Nesse instante desejava estar o mais longe possível da casa de Gasparino. Desde muito, Gasparino e Ignácia viviam em quartos separados, mesmo assim, Dasdores não queria que ela a visse. Por enquanto preferia camuflar o romance, acreditava que o tempo resolveria melhor a situação. Ao passar a chave na porta de saída da casa, deu de cara com Ignácia voltando da folia: - Sua vagabunda. O que está fazendo aqui? Roubando o homem de outra? - Vagabunda eu? Quem é você pra me criticar. Não passa de uma decaída que larga o marido em casa e sai balançando o rabo pelos cantos da cidade. Estou ocupando o lugar que você repudiou. - Sua traidora. Chegou de mansinho e não perdeu tempo. Logo pulou pra cama do ricaço. Você não vale nada Dasdores. - Onde está o seu amado Tiziu? Não anda correndo atrás dele? Ignácia... Ignácia... Você não passa de uma mulher ordinária. Com o rosto lívido de ódio, Ignácia atacou Dasdores, ao se agarrarem desabaram no chão. O barulho despertou Gasparino: - O quê está acontecendo? - E você também seu negro desclassificado... - Cala a boca Ignácia. Não tem moral pra reclamar de coisa alguma. Onde e com quem estava? Responda! - Não estava com ninguém Gasparino... Saí um pouco e... - Deixe de mentira Ignácia. Acha que sou algum idiota? Já faz tempo que coloca remédio na minha comida, depois foge para a batucada e se encontra com o patife do Tiziu. Acha que não sei? Quem manda nessa casa sou eu e Dasdores virá aqui quantas vezes quiser, na hora que quiser. Entendeu? Você não passa de uma escrava Ignácia. Coloque-se no seu lugar. - Mais... - Não tem mais, nem menos. Vá preparar um café, traga o bolo que Dasdores e eu estamos com fome. - Não irei. - Minha vida é esfolar escravo folgado que nem você. Não me provoque que lhe dou uma surra, sua negrinha safada, sem vergonha. Vá fazer o café agora. E, preste atenção no que vou lhe dizer. O dono do xexelento do Tiziu o mandará hoje para o calabouço. Sabe o que acontecerá? Sabe nas mãos de quem ele cairá? Interfira por ele e verá. Ignácia abaixou a cabeça e obedeceu muito contrariada. Serviu a ambos, após trancou-se no quarto, enquanto Gasparino e Dasdores ficaram conversando na sala como se nada houvesse acontecido. Depois do incidente, Dasdores tornou-se uma visita assídua na casa de Gasparino. Elas andavam às turras, discutindo e brigando por causa dele. Talvez um dia o imprevisível destino e o poderoso tempo transformassem-nas em boas amigas, afinal existem ou não, pessoas que adoram relacionamento complicado? Capítulo, 98. Nada no mundo alegrava o coração da Sinhá Conceição. Nem a vingança da honra ultrajada a ajudava superar sua angústia. Embora a matança não fosse uma boa recordação, não se arrependia da desforra; os malditos piratas mereceram. Sua desolação provinha de uma série de decisões equivocadas, praticamente impossíveis de serem corrigidas. A vida se tornara, inexplicavelmente, enfadonha para uma mulher tão empreendedora como ela. Agora o tédio a dominava, a ponto de não se interessar, nem pelos negócios. Até a odiada mudinha lhe era indiferente. Via Ambá conversando com o negro no horário de serviço e não se importava. Eles se amavam, trabalhavam com afinco e capricho. Num passe de mágica a deixou cuidar da própria vida, inclusive parou de persegui-la. Ambá retornou ao engenho como prisioneira, repleta de apreensão. Ao constatar a drástica transformação no comportamento da sinhá se tranqüilizou. No dia da chegada apavorou-se ao vê-la eliminar os piratas impiedosamente. Assistiu a cena tremendo de medo. Chegou a comentar em banto com Kuami: - A próxima serei eu. A sinhá me odeia e ela está completamente louca. Veja só o jeito dela. - Fique quieta Ambá. O melhor a fazer é ficar invisível. - Como? - Calando a boca e olhando pra baixo. Pouco a pouco notou a diferença, então sua preocupação passou e para completar sua felicidade, a Sinhá sequer se lembrava da existência de Ambá. Isso a deixou aliviada. No entanto, Ambá percebia o indisfarçável desgosto gravado no rosto dela. De onde estava observou a Sinhá caminhar até a praia. Ela nunca ia à beira-mar, recentemente havia mudado a rotina. Vencia com esforço, o matagal, os pés de pitanga silvestre e o capinzal que cobriam a areia fina. Sentava-se e ficava com o olhar perdido no horizonte durante horas a fio, como se procurasse algo, como se buscasse um novo elo com a vida. Ambá não podia suspeitar que a Sinhá sentia saudades de Valentim, aliás, só suportara os sucessivos estupros praticados por homens diferentes, porque enquanto a violentavam, fechava os olhos e pensava no seu negrinho querido. Chegou até soltar um meio sorriso ao recordar que em determinado instante quase experimentou o prazer por causa de Valentim, repassando, mentalmente, os momentos de amor ao lado dele. Um barulho vindo do matagal interrompeu seus devaneios, lhe chamou à realidade. Imaginou que se tratava de algum bicho-do-mato. Poderia ser feroz, portanto levantou-se e ficou atenta. Como se fez um súbito silêncio perguntou: - Quem está aí? O homem desabalou e na desesperada escapada levava os galhos no peito, aí a Sinhá gritou: - Pirata miserável não vai conseguir fugir. Os seguranças do engenho surgiram para acudi-la. Ela apontou a direção e eles chisparam no encalço dele. Apesar de não conseguir acompanhá-los, a Sinhá, seguiu-os o mais depressa possível. Não foi difícil pegar o intruso. Encontrava-se caído a poucos metros, exausto. Os seguranças armados aproximaram-se devagar, o cutucaram e ele se virou. Quando se preparavam para executá-lo Conceição pulou na frente, aos brados: - Não encostem nele. Afastem-se. Valentim, Valentim é você? - Sinhá Conceição? - De onde você surgiu neguinho? - Bem... - Depois você me conta. Levem-no para dentro e o coloquem no meu quarto. Os seguranças se entreolhavam aturdidos, atônitos, aparentando não terem entendido a ordem. - Estão esperando o quê? Levem-no para dentro, para o meu quarto. Já disse. Seis meses se passaram e ninguém compreendia a relação dos dois. Ele dormia na casa-grande, agia igual a um chefe, vivia cheio de regalia, tais os privilégios. A Sinhá não desgrudava dele. Até parece que tomara o lugar de Nhô Prudente. Só se notava uma substancial diferença: Com o aparecimento de Valentim a fisionomia da Sinhá melhorou instantaneamente. Ela sorria, gentilmente para as pessoas, desde que as mulheres não se engraçassem com o escurinho jeitoso. Depois de muito hesitar Kuami encheu-se de coragem: - Nhô Valentim, meu nome é Kuami. Sou escravo da fazenda e queria lhe pedir um favor. - Sei quem você é Kuami e a Ambá? Como está? - Vai bem. É justamente sobre ela que desejo lhe falar. - Fale. - Queria que a Sinhá autorizasse me casar com Ambá. É um sonho antigo, se a Sinhá permitisse faria uma casinha pra morar com ela. A senzala... - Entendo Kuami. Pode se preparar. Você se casará com Ambá. Conversarei com a Sinhá e ela não colocará obstáculo. Arrumaremos uma casinha pra vocês. - Obigado Nhô Valentim. O senhor é um homem bom. - Não sou nhô, nem senhor. Também fui escravo Kuami e uma pessoa bondosa me alforriou. Capítulo, 99. O implacável tempo se nega envelhecer. Como uma eterna criança brinca com os três reinos da natureza, principalmente o animal e o vegetal. Não há quem o resista porque permanece irreversível e se basta em si mesmo. Tudo passa menos ele. Por não ter princípio, nem fim não descobriram prece, nem súplica capaz de aplacar sua inexorabilidade. Após morar tantos anos entre os tupiniquins, a idade pegou o Visconde de jeito. De repente, num piscar de olhos, sentiu o peso de a velhice alcançá-lo. Já não possuía mais a mesma agilidade e reflexo de antes. Às vezes se surpreendia ao tropeçar num ou noutro obstáculo ou se cansar com facilidade. Não agüentava enfrentar a floresta, os rios e suas barreiras naturais que gostava de paixão. Durante sua permanência na aldeia, o Visconde não parou de pesquisar a rica flora medicinal da floresta e desvendou, com a indispensável ajuda do pajé, o preparo e indicações de drogas. Usava o caju, o ananás e as flores do jaborandi como diuréticos. O guaraná para disenteria. A copaíba, a pariparoba e a cabriúva em ferimentos. O maracujá nas febres. A poaia e a batata-de-purga como purgante para problemas intestinais. A contra-erva e o pau-cobra e a erva-de-cobra nas mordeduras de serpente e de outros animais venenosos. O tabaco e o jataí nas doenças pulmonares e daí por diante. Catalogou-as e as entregou ao padre Moraes. Por sua vez, o jesuíta que também prestava assistência médica gratuita tanto aos índios, como aos colonos, as utilizou na clínica e as enviou através das Cartas jesuíticas aos superiores da Companhia de Jesus na Europa. Ao concluir que não retomaria o modo de vida dos brancos, que viveria ao ar livre, categoricamente decidiu terminar seus dias ali ao lado da sua amada Amoroti. Eles se davam bem, nunca discutiam. Seduzida pela convivência de harmonia, cuidava do Visconde, do seu querido Nambiquara com zelo e ternura, porém ele definhava visivelmente. Não acompanhava Apoenã nas caçadas ou pescarias e quase não caminhava mais. Preferia ficar deitado na rede inteiramente mudo. Certo dia, o pajé o desenganou: - Não é possível Apoenã. Temos de fazer alguma coisa. - O que Amoroti? O pajé falou. Não tem jeito. - Como não tem? Precisamos encontrar uma maneira. - Conhece bem a tribo. Temos horror à doença. Ninguém vai ajudar Amoroti. É assim. É a vontade de Tupã. Não adianta lutar. É questão de tempo. Nambiquara não sobreviverá. É o destino. Deixe-o lá quietinho. É assim que funciona. Notando que o marido não se levantava da rede, Amoroti foi acordá-lo e para seu espanto o encontrou morto. O tempo o consumira. Ela gritou de dor, na verdade seu grito mais se assemelhava ao rugido de um animal ferido: - Apoenã! O que farei da minha vida sem o meu amado. Andarei solitária sem ter com quem compartilhar meus momentos. Seja na floresta, seja no rio, seja na aldeia estarei sempre sozinha e com o meu coração doendo de saudade. - Não tem remédio para isso Amoroti. Conforme-se, contra a morte não há cura. Nambiquara teve uma boa vida, e nesta sua passagem pela terra, possuiu de tudo um pouco, inclusive um grande amor. Ele conheceu a felicidade e isso basta. - É verdade. Conquistou-me o suficiente para quase me matar de tanta paixão. Partiu deixando saudade. Ai Nambiquara, ai Nambiquara o que farei daqui por diante meu amado, meu melhor amigo? Envolveram o Visconde em panos de algodão, o enfeitaram com penas de diferentes aves e o sepultaram de cócoras, com a cabeça entre os joelhos, de frente para o nascente. Na cova colocaram suas armas, alguns alimentos e tabaco. O Visconde partiu. À noite, antes de dormir, invariavelmente, Amoroti pensava no nascente. Assim como em todas as manhãs o sol nasce no horizonte, guardava a esperança de que Nambiquara também renasceria para ela. Tal idéia a animava, a consolava. Não importa onde, nem quando, só acreditava no renascimento dele: “Talvez aqui, talvez no além, ele renascerá”. – Falava bem baixinho consigo mesma. Depois, Amoroti se deitava na rede e sussurrava: “Durma bem, meu amor. Durma bem, meu Nambiquara querido”. Estranhamente obtinha o silêncio como resposta, mas não em seu coração. Naquele recanto sagrado, onde guardava seus segredos mais preciosos, onde repousava o mais puro e tenro amor, ela ouvia o seu Nambiquara lhe dizer: “Durma bem Amoroti, durma bem minha flor, a mais bela e pura flor desse meu gigantesco jardim”. Fim. Praia da Costa, Vila Velha, outono, 31 de março de 2010. Marcilio Massad Persici Autor.
Posted on: Sat, 16 Nov 2013 23:45:19 +0000

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